Médico de artistas, o secretário Jorge Pagura admite os erros do sistema de saúde paulistano e diz que é desgastante fazer parte do governo Pitta

O neurocirurgião Jorge Pagura, 50 anos, é uma celebridade em sua área. Ficou famoso em todo o País por cuidar de pacientes como os atores Gerson Brenner e Claudia Liz e o radialista Osmar Santos, que tiveram graves problemas neurológicos. Secretário de Saúde da Prefeitura de São Paulo desde março do ano passado, Pagura hoje paga um preço alto por ter trocado temporariamente a medicina pela administração pública. "Eu estou cansado, levando paulada até dizer chega." Mesmo assim, tenta salvar a imagem do PAS (Programa de Atendimento à Saúde), uma idéia vendida aos paulistanos pelo ex-prefeito Paulo Maluf como uma revolução na área da saúde, capaz de solucionar os problemas da falta de médicos e filas gigantescas em hospitais e centros de saúde. O PAS foi um dos motes da eleição de Celso Pitta, um prefeito desgastado e isolado politicamente, com um dos maiores índices de rejeição constatados na cidade. Já no primeiro ano de governo de Pitta, a Secretaria de Saúde admitia não ter recursos para manter o sistema em funcionamento. Daí para a frente, começaram a pipocar denúncias de superfaturamento, pagamentos de serviços não prestados e contratos sem licitação. As dívidas do PAS chegaram a R$ 200 milhões. Somados às denúncias da máfia da propina, os problemas na saúde levaram o secretário Pagura a pôr um fim nas suas corridas matinais no parque e também nas partidas de vôlei de praia. "Agora o que eu costumo fazer é comprar os jornais para ver o que saiu e responder. E, na maioria das vezes, estou respondendo a coisas sobre as quais eu não tenho nada o que fazer." No meio do caos em que se transformou a prefeitura paulistana, Pagura procura uma saída para reverter o quadro e sonha com a municipalização da saúde. Vai precisar rezar muito para São Judas Tadeu, o santo das causas impossíveis, de quem é devoto.

ISTOÉ – O PAS foi apontado em São Paulo como a solução para os problemas da saúde no País e já no ano seguinte, sem recursos, o modelo parecia praticamente falido. É possível hoje salvar essa proposta?
Jorge Pagura

O PAS mostrou uma preocupação de mudar de alguma forma os rumos da saúde. Como modelo gerencial, é uma ótima idéia. Mas houve um grande erro que foi querer formatar um modelo de gestão em toda a cidade de uma forma muito rápida e sem que os resultados iniciais e as próprias falhas de um método que era novo tivessem sido avaliados com parcimônia. A rede municipal não estava funcionando bem e também houve uma diminuição, como ainda há hoje, do número de funcionários na área de saúde, com postos subutilizados. Havia uma restrição no atendimento. Mas, de repente, com a aceitação do PAS, as coisas se confundiram. Imaginou-se que o PAS era um sistema de saúde capaz de combater o SUS (Sistema Unificado de Saúde), que era o sistema vigente. E já se começou a discutir o PAS para substituir o SUS. Existia verba, mas houve exageros. Não precisaria iniciar o PAS com helicópteros. Foi quando começou a entornar o caldo. Ele é um sistema extremamente ágil para atendimento emergencial e ambulatorial, mas não tem característica de fazer ações preventivas, ações de saúde, vigilância epidemiológicas.
 

ISTOÉ – Agora houve também desvios de recursos, obras superfaturadas e muitas outras denúncias de corrupção?
Jorge Pagura

 Hoje eu passo aqui 80% do meu tempo tentando responder às indagações e 20% trabalhando. Se fosse o contrário, eu renderia muito mais. Agora, nós temos tido uma posição clara. Se um ou outro realmente fez uma malversação do dinheiro público e agiu mal, não podemos culpar o sistema. Devemos é criar mecanismos para que ele seja mais bem controlado e transparente. E esse é o sistema novo que estamos implantando hoje. Agora, o pessoal precisa entender como funcionam essas cooperativas do sistema do PAS. Elas deveriam ter os seus instrumentos de controle. Os cooperados elegem seu conselho de administração e conselho fiscal. E eles podem destituir a presidência. A própria cooperativa devia fazer os controles dos gastos.
 

ISTOÉ – Há denúncias de que foram criadas 14 gerenciadoras para administrar os módulos do PAS, todas elas seriam ligadas às grandes empreiteiras. E essa intermediação aumentaria os custos…
Jorge Pagura

 Eu não participei da criação. Quando eu cheguei, o sistema estava todo formatado. Acho que a constituição das cooperativas deveria ter sido dada às cooperativas médicas, para que elas prestassem esse serviço. E deram também a esse grupo de médicos a função administrativa. Eles achavam que precisavam de uma estrutura gerencial. E era muito mais lógico que as empresas que estivessem fazendo o gerenciamento fossem da área médica. Mas naquele momento se optou por empresas que fizessem todo tipo de administração. Esse custo era muito alto. Era o custo de 6% ao mês e é uma média de desembolso de cerca de R$ 36 milhões a R$ 40 milhões por ano. Mas, já no ano passado, com a diminuição das verbas, eu precisava reduzir os custos administrativos. E a primeira coisa que eu pedi foi que se rompessem os contratos com as administradoras. E, num primeiro momento, elas recebiam 6% e isso caiu imediatamente para 3%.
 

ISTOÉ – Há denúncias de que houve o loteamento das unidades do PAS por vereadores, da mesma maneira como ocorreu com as administrações regionais de São Paulo denunciadas no esquema da máfia das propinas…
Jorge Pagura

O que existe são contatos com alguém que tem uma região política, que luta por aquela região e está exercendo uma determinada função política. E tem indicação. Ele quer saber se dá para encaixar um dentista, tem não sei quem para encaixar. Isso faz parte da política. A gente não pode dizer: "Não vou encaixar ninguém." Isso não existe em política. Com o presidente do BNDES é assim, com a Caixa Econômica é assim. Com o superintendente do Hospital dos Servidores é assim. O que há são pedidos políticos. Fazendo uma ou outra indicação, isso para mim é política e isso eu aceito.
 

ISTOÉ – Há denúncias de que vereadores recebiam altas somas vindas do PAS. O sr. tem conhecimento?
Jorge Pagura

 A secretaria reviu todas as contas de 1996 e 1997. E existiam glosas dentro dessas contas. Todo mundo acha que ninguém está controlando nada, mas nós estamos controlando. Já foram mandadas todas essas contas para a auditoria da Secretaria de Finanças. Tudo aquilo que não for adequadamente explicado, nós estamos glosando. Além do mais, existem os relatórios de intervenções feitas.
 

ISTOÉ – Existem denúncias também de 1998, já na gestão do sr.?
Jorge Pagura

 Essa foi de serviços de lavanderia, nós mandamos ver. Era uma denúncia de superfaturamento. Tinha uma lavanderia dentro de hospital, mas não funcionava. Todo mundo sabe que é muito melhor terceirizar, sai mais barato. Mas estamos verificando por que esse preço era muito maior. Nenhuma denúncia que chega a nós deixa de ser averiguada.
 

ISTOÉ – Como um neurocirurgião famoso, não incomoda ao sr. fazer parte de uma administração desgastada e isolada politicamente?
Jorge Pagura

Eu não digo para você que está sendo fácil conviver com isso. Mas a gente lê na imprensa denúncias contra a secretaria e vai ver depois, no pé da página, que o fato aconteceu em 1996. Mas o secretário hoje sou eu. Então, há confusão e desgaste e a gente fica preocupado. Agora, eu vim com uma missão. Meu compromisso é com a população de São Paulo. Lógico que existe uma lealdade administrativa que eu tenho com o prefeito.
 

ISTOÉ – Ao tentar fazer mudanças, o sr. tem sofrido pressões?
Jorge Pagura

 Em nenhum momento, o prefeito pediu que eu amenizasse as mudanças que tenho feito aqui. Se tiver interferência política aqui, pode ficar certo que eu vou para casa, vou voltar para neurocirurgia. É difícil ficar num governo desgastado? É. É difícil ficar num governo ilhado? É. Mas até hoje nunca tive do prefeito nenhum tipo de atitude que me retirasse do rumo que foi preestabelecido. Eu estou cansado, levando paulada até dizer chega. Coisas que a gente faz são pouco divulgadas, isso faz parte de um governo que está realmente sofrendo uma pressão muito grande. Isso desgasta? Desgasta, é claro. No sábado, eu costumava levantar para correr e jogar vôlei, mas agora o que eu costumo fazer é comprar o jornal para ver o que saiu e responder. E, na maioria das vezes, estou respondendo a coisas sobre as quais eu não tenho nada o que fazer. É difícil. No ano passado, nós vacinamos 600 mil idosos, aí vêm denúncias de 1996, 1997 e 1998.

ISTOÉ – Se forem detectadas irregularidades feitas por outros membros da administração, o sr. vai apontá-las em público?
Jorge Pagura

 Não há nenhuma dúvida. A nossa função aqui não é acobertar nada. Só que vou tomar todos os cuidados necessários. Para destruir alguém e falar alguma coisa é fácil, mas correr atrás para construir é outra coisa. Vamos antes, sempre, ter um parecer do jurídico. Agora, se eu não fizer as denúncias que eu tiver de fazer, estou prevaricando, estou fora da minha função dentro do órgão público.
 

ISTOÉ – As dívidas do PAS hoje chegam a quase R$ 200 milhões. Quem vai pagar essa dívida?
Jorge Pagura

 As dívidas dos cooperados com os fornecedores já devem beirar os R$ 190 milhões. Como é uma gestão compartilhada entre cooperativa e prefeitura, você não precisava se credenciar ao SUS para receber as consultas e os procedimentos, que dariam em torno de R$ 70 milhões por ano de repasse. Aí é aquela briga política. Então, a prefeitura deve para as cooperativas perto de R$ 200 milhões. A prefeitura também deveria receber do SUS cerca de R$ 200 milhões e as cooperativas devem para a praça cerca de R$ 200 milhões. E isso porque o dinheiro do SUS não veio e acho que não vai vir. Ficou de se montar uma comissão para negociar essa dívida.
 

ISTOÉ – O PAS ainda é viável?
Jorge Pagura

O que me deixa mais chateado é que alguns que cometeram algum tipo de malversação acabaram deixando que um modelo de gestão, ágil, bom e de aceitação pública, ficasse hoje numa situação que parece não funcionar. Mas ele funciona, quero defendê-lo publicamente. O povo gosta de ter atendimento pelo PAS. Isso não quer dizer que eu vou deixar de abrir as contas para o Estado. Dá para deixar o PAS ágil, transparente, ocupando uma faixa do sistema municipal de saúde, que é como eu vejo o PAS. E não sendo considerado como o sistema de saúde do País. Essa foi a grande confusão. Ele é um modelo de gestão. Ele virou bandeira política numa hora e isso foi prejudicial. Agora, não é para ele ser bandeira política e eleger ninguém nem é para ser massacrado como está sendo. Ele mostrou um cuidado maior com a saúde. Eu não quero criticar quem fez, mas como o PAS vai funcionar hoje, não tem nada a ver como ele funcionou.
 

ISTOÉ – O sr. acha que o atendimento na área de saúde é bom? O que a população de São Paulo pode esperar daqui para a frente?
Jorge Pagura

 Nós estamos numa situação de limite. Você não pode comparar verba de R$ 60 milhões, R$ 50 milhões, com verbas de R$ 40 milhões, por mais que se faça enxugamento administrativo.
 

ISTOÉ – A população ainda confia nos serviços de saúde, depois das promessas e da falta de resultado?
Jorge Pagura

 Eu tenho ido a muitos lugares. Para confirmar, gostaria que a imprensa fosse junto, sem câmeras, sem fotografia. É surpreendente ainda como a população gosta do atendimento do PAS.
 

ISTOÉ – Como o sr. avalia a gestão do ministro José Serra?
Jorge Pagura

Foi uma surpresa positiva. No começo, ficamos um tanto temerários porque ele é um político. A gente vive ainda de pequenas verbas e é preciso melhorar a qualidade de equipamentos de hospitais. Há necessidade de grandes investimentos na área da prevenção. A campanha contra a dengue, por exemplo, precisa de mais verbas. O sistema de consulta do SUS também precisa ser melhorado.
 

ISTOÉ – O ator Gerson Brenner, que foi tratado pelo sr., tem chances de recuperação?
Jorge Pagura

Ele está surpreendentemente melhor, embora ainda longe do que a gente quer. Hoje, ele já completa bem as frases. Vai ser difícil ele chegar bem próximo do que era antes. Mas ele está muito bem. Em casos como o dele, normalmente, 95% das pessoas morrem e as outras 5% ficam em estado vegetativo permanente.
 

ISTOÉ – E o radialista Osmar Santos, que sofreu um grave acidente de carro?
Jorge Pagura

 É um caso impressionante de recuperação. Se a lesão no cérebro não fosse na área da fala, ele estaria transmitindo jogos hoje novamente.
 

ISTOÉ – O sr. se arrepende de ter entrado na política?
Jorge Pagura

 Não, embora tenha momentos de frustração. Minha profissão ainda é a de neurocirurgião. Espero sair da política sem nenhum respingo na imagem que demorei 25 anos para fazer.