Em agosto de 1997, as imundícies de um banheiro de delegacia de polícia da região do Brooklyn, em Nova York, vieram à tona e mereceram o asco e repúdio do público. Foi nos sanitários do 70º Distrito que policiais torturaram quase até a morte o imigrante haitiano Abner Louima, 30 anos. Um dos agressores, o guarda Justin Volpe, introduziu no ânus da vítima o cabo de um desentupidor de ralo. A sodomia acabou perfurando intestino e bexiga. Depois o mesmo instrumento foi enfiado na boca de Louima, quebrando seus dentes incisivos. Para que não houvesse dúvidas de seu crime, Volpe saiu pelos corredores da chefatura brandindo o desentupidor, sujo de sangue e excremento, como se fosse uma espada e gritando: "Vamos ensinar a negrada a respeitar a polícia. Esta é sua sujeira, negro imundo!"

A verdadeira sujeira começaria a ser limpa na semana passada. O caso virara cruzada cívica e foi parar nos tribunais federais. Afinal, o grau de brutalidade chegou a chocar até mesmo o prefeito Rudy Giuliani, tido como insensível aos desmandos da tropa. Até o The New York Times deixou a sisudez de lado para contar os detalhes do caso. Para unir mais insulto à dor, os advogados de defesa dos torturadores alegaram que os machucados em Louima eram resultado de relações homossexuais consentidas. A estratégia de mentiras iria por água abaixo quando até mesmo outros policiais testemunharam contra o réu e relataram sua fúria sem controle durante o episódio. Na segunda-feira 24, Volpe, 27 anos, o primeiro de um grupo de cinco a ser julgado, tornou-se réu confesso. Espera desta forma que o juiz Eugene Nickerson tenha a piedade não demonstrada por ele no 70º Distrito e pronuncie sentença mais amena do que a de prisão perpétua sem chances de liberdade condicional.

Abner Louima é casado há três anos e pai de três filhos. Isso, porém, não o impediu de, no dia 9 de agosto de 1997, ir farrear numa boate frequentada por haitianos no Brooklyn. No meio da noite ele seria arrastado para a rua por dois policiais. Fora confundido com outro homem que deu um pé-de-ouvido num guarda e fugiu. O espancamento começou já na calçada, com o preso algemado, prosseguindo dentro do carro patrulha a caminho da chefatura. Eram quatro guardas batendo. Na delegacia, Volpe e seu parceiro Charles Schwartz levaram Louima para o banheiro. Schwartz imobilizou o prisioneiro, enquanto Volpe aplicou a tortura. Pelos corredores da 70ª delegacia, os gritos de Louima eram ouvidos.

 

"Muralha azul"A admissão de culpa de Volpe será mais uma arma que a promotoria irá aplicar nos próximos julgamentos separados dos outros policiais acusados. Trata-se também do resultado da quebra do tradicional código de segredo que impera na polícia – a chamada "muralha azul de silêncio". Logo depois de visitar Louima no hospital o prefeito prometeu ação. A queixa de assalto a policiais que pesava contra o haitiano foi retirada e o comissário Howard Safir disparou: "Nós vamos garantir que os responsáveis por isso acabem na cadeia." Ou seja: os policias envolvidos perderam assim o apoio de seus líderes. "Ao que parece, a quebra do famoso código de silêncio da polícia de Nova York foi exigida pelo prefeito e pelo comissário Safir", disse a ISTOÉ Norman Siegel, diretor-executivo da New York Civil Liberty Union. Com isso foi possível ouvir, por exemplo, o depoimento do guarda Mark Schofield dando conta de que Volpe pediu emprestado um par de luvas pretas e as retornou cobertas de sangue e excrementos. E o sargento Kenneth Wernick disse que Volpe se gabava: "Peguei o cabo do desentupidor, enfiei 15 centímetros no negro e depois enfiei na boca dele para limpar."

Os desdobramentos deste julgamento serão muitos. Em primeiro lugar, pode transformar Louima num milionário. Ele move um processo civil contra a cidade no valor de US$ 55 milhões. Seu advogado é Johnnie Cochram, que depois de defender e garantir a liberdade do ex-jogador O. J. Simpson transformou-se numa espécie de Perry Mason da negritude. Cochram, juntamente com o reverendo Al Sharpton – líder do National Action Network, que faz da demagogia poderosa arma de agitação –, encabeça a enorme campanha popular contra a brutalidade policial. Este movimento ganhou combustível irresistível recentemente com a morte de outro imigrante negro, o africano Amadou Diallo, fuzilado em fevereiro último com 22 balas de uma saraivada de 41 disparos, por quatro policiais à paisana. Depois deste incidente, milhares de pessoas foram à frente do QG da polícia protestar e forçar a própria prisão, em manifestações de desobediência civil. Várias celebridades, entre elas o ex-prefeito David Dinkins e a atriz Susan Sarandon, deixaram-se levar algemados para o xilindró. Durante este autêntico motim da cidade contra o prefeito Giuliani e seu fiel escudeiro Safir, a figura de Louima sempre serviu de bandeira. Com os resultados do julgamento de Volpe, a prefeitura e a polícia tiveram a primeira de uma série de prováveis grandes derrotas.