O outrora Grande Timoneiro da China, Mao Tsé-tung, hoje é apenas um enorme retrato pendurado na parede, mas os chineses continuam posando para a posteridade diante de sua imagem, na praça Tian Am Men (Paz Celestial), em Pequim. Na verdade, o retrato seriam vários, já que foram feitas cópias idênticas para ser limpas e restauradas sem que ninguém perceba – ou para o caso de um pombo revisionista carimbar o Grande Líder. Mas durante o mês de junho, o retrato do presidente Mao não terá muito o que contemplar. Na praça da Paz Celestial vai reinar apenas a paz dos cemitérios. A maior praça da China, senão do mundo, vai estar proibida ao público e vigiada por soldados armados, oficialmente para reformas, que já começaram, em previsão da festa dos 50 anos da fundação da República Popular, no dia 1º de outubro. Na verdade, para evitar qualquer tentativa de comemoração do 10º aniversário do movimento dos estudantes pela democracia, que terminou esmagado na madrugada de 3 para 4 de junho pelos tanques do Exército Popular de Libertação (EPL). Calcula-se que mil pessoas foram mortas, milhares foram presas, enviadas para "campos de trabalho" ou acabaram no exílio.

"Mao foi o último imperador da China e não o pobre Pu Yi, que acabou a vida como jardineiro", brinca Jon, guia turístico que ocidentalizou o nome para John, acrescentando uma simples consoante. Se até os guias, antes tão vigiados e aterrorizados em dizer uma palavra a mais, se dão ao luxo de fazer piadas com Mao Tsé-tung e americanizar o nome ainda por cima, é porque a China virou mesmo do avesso.

O Oriente é vermelho, como proclamava um hino revolucionário que os chineses foram obrigados a berrar milhões de vezes. Vermelho Coca-Cola, vermelho McDonald’s, que se instalou na praça da Paz Celestial, do lado oposto ao retrato de Mao e de lá se alastrou por toda a China. As lanchonetes vivem lotadas e são um dos programas favoritos dos novos-ricos. Os economistas, que não sabem mais como explicar que diabo está acontecendo na China, inventaram a expressão "capitalismo vermelho". Há 20 anos, Deng Xiaoping mudou a palavra de ordem, que passou de "fazer a revolução" para "aprender a ganhar dinheiro". E desde a repressão da Primavera de Pequim, quando ficou claro que as reformas democráticas exigidas pelos estudantes não acompanhariam a abertura econômica, o regime baseou sua legitimidade no crescimento econômico, na elevação do nível de vida e na manutenção da ditadura do Partido Comunista. Os chineses se lançam no consumo com o mesmo ardor e radicalismo com que outrora fizeram na Revolução Cultural (1966-1976). Só que, em vez de brandir o livro vermelho do presidente Mao, agitam o cartão de crédito, considerado um dos símbolos máximos de status, juntamente com o telefone celular e o carro. Desde que o chamado "socialismo de mercado" foi implantado, a população mora cada vez melhor, come melhor, se veste melhor, um número cada vez maior de pessoas vai ao restaurante, descobre a sociedade de consumo e de lazer. A maioria dos habitantes das cidades, mesmo morando mal, já tem o equipamento doméstico de base: fogão, geladeira e televisor. O celular, símbolo de status mais acessível que o carro, virou uma verdadeira praga. Impossível escapar aos chamados alheios mesmo nos templos budistas.

Consumismo O programa favorito dos chineses hoje é passear em shopping center. Mesmo quando não podem comprar, pelo menos para ver vitrine, comer no McDonald’s ou na Pizza Hut. Em vez de esconder tudo que tinha algum valor, com medo de que os Guardas Vermelhos confiscassem, como no tempo da Revolução Cultural, os chineses hoje adoram ostentar o que têm. Nas ruas homens e mulheres exibem casacos de couro e pele (o "ecologicamente correto" ainda não chegou por aqui), camadas de bijuterias faiscantes, quando não de jóias verdadeiras. Proibidos por tanto tempo de fazer comércio, os chineses compram e vendem de tudo. Inclusive o livro vermelho dos Pensamentos do presidente Mao Tsé-tung, relegado ao estatuto de quinquilharia, que pode ser comprado no Mercado de Antiguidades por 20 yuans (menos de três dólares). Eles pedem 80 yuans para os turistas, mas largam por 20. Vendo que estou levando um exemplar em chinês, o vendedor me oferece um em inglês: "Assim você pode entender!" Depois se rende: "Você tem razão, a gente também nunca leu. E entendeu menos ainda…" E cai na risada. Tudo é bom para ganhar dinheiro. O templo Shaolin, famoso no mundo inteiro por ter criado o kung-fu, oferece cursos e estágios pagos em dólar e está se preparando para abrir franquias. "A minha geração, que cresceu depois da Revolução Cultural, só acreditava em Mao. Hoje a gente não acredita em mais nada. O único deus e líder é o dinheiro", define Wang, 20 anos, estudante de Economia.

Vendo a maneira colorida de os chineses se vestirem, é possível imaginar a repressão que foi necessária para obrigar esse povo a usar o triste "uniforme Mao". "Quando o país começou a se abrir e nós pudemos ver filmes de outros países, o que mais impressionou foi a maneira de as pessoas se vestirem. Tudo tão colorido, diferentes uns dos outros, enquanto nós todos usávamos a mesma roupa triste, em azul-marinho ou cinza", conta Liu, microempresária que trocou um emprego de professora do secundário para abrir uma barraca de roupas na Rua da Seda. "Todo mundo queria ter aquelas roupas, principalmente os jeans." Roupas e restaurantes de rua foram os primeiros negócios a abrir na China e ainda hoje representam 80% da iniciativa privada.

No passado, Pequim impressionava os visitantes por suas avenidas largas e imensas, cheias de bicicletas e praticamente nenhum carro. Hoje eles já são um milhão circulando pelas ruas. Só que nada aqui foi previsto para a chamada civilização do automóvel. As casas não têm garagem, as lojas não têm estacionamento, a não ser alguns novíssimos centros comerciais. Os carros já saem da fábrica com defeito por falta de mão-de-obra especializada. Os mecânicos de manutenção ainda não estão formados. Pior ainda, todo mundo é motorista de carta nova. Pelo menos metade dos motoristas simplesmente comprou a carta. O que faz com que a China, que tem o menor parque automobilístico por habitante no mundo, tenha o maior número de acidentes mortais. Fora os congestionamentos e a poluição do ar.

 

A outra face A China é hoje o maior canteiro de obras do mundo. Um quarto dos guindastes de aluguel disponíveis no mundo inteiro está atualmente em Xangai. Os prédios brotam da terra, levando apenas um ano para ser construídos. A receita é simples: as equipes se revezam 24 horas por dia, trabalhando no frio do inverno em simples andaimes de bambu, com os acidentes de trabalho que se imagina. Praticamente todos os operários que trabalham na construção vêm do interior do país, em busca do eldorado nas cidades. As mulheres se empregam como domésticas, função que tinha desaparecido durante o maoísmo, mas que volta a ser popular entre a nova classe média. Sem esses migrantes, o milagre chinês não existiria. Mas além de ser explorados, viver em dormitórios insalubres, eles são discriminados e acusados de todos os males.

O crescimento econômico da China manteve um nível recorde que beirou os 10% durante quase 20 anos, taxa para colocar milagres japoneses ou brasileiros no chinelo. O consumo vinha aumentando de 40% ao ano, mas no ano passado caiu para apenas 5%. Os chineses começam a se dar conta de que estão consumindo sobre um vulcão. Boa parte da indústria está obsoleta, a burocracia emperra o funcionamento das empresas, a corrupção mina o sistema pela base. As reformas econômicas lançaram nas ruas entre 100 milhões e 200 milhões de chineses, dos quais apenas metade teria encontrado emprego em outro lugar. O próprio governo admite a existência de 30 milhões de desempregados urbanos. A situação é a cada dia mais explosiva. No Grande Salto Adiante (1958-1961), Mao Tsé-tung mergulhou a China num desastroso programa de comunização da agricultura que resultou na morte de milhões de camponeses. Resta saber que tipo de catástrofe espreita o grande salto que os herdeiros de Mao estão preparando para a China.

 

Vazamento nuclear

Uma assombrosa contabilidade da espionagem chinesa nos EUA veio à tona na terça-feira 25, após a divulgação de um relatório elaborado pelo Congresso americano. Pequim roubou nos últimos 20 anos informações confidenciais de todos os tipos de ogiva nuclear que os mísseis balísticos americanos carregam. Segundo o documento, isso permitiu que a China desse um tremendo salto no aprimoramento de suas armas. O namoro entre as duas potências anda bastante abalado. A China está enfurecida pelo ataque acidental da Otan à sua embaixada em Belgrado, há três semanas, e os congressistas americanos ficaram horrorizados com a devassa de seus segredos atômicos. Mesmo assim, os governos dos dois países acenam para a manutenção da política de estreitamento das relações.