Pode um assassinato ocorrido em um canto esquecido do mundo, no caso a pequena cidade de Cripple Creek, nos cafundós do Estado americano do Colorado, influenciar a vida de pessoas que não têm relação alguma com a morta ou com o matador? Será que um crime bárbaro pode aspergir grãos de castigo e reflexão por todo o planeta? É com este ponto de partida que o escritor Carlos Nascimento Silva, autor de A casa da Palma, monta a história de seu novo livro Cabra- cega (Relume Dumará, 250 págs., R$ 25), um romance que, apesar do primeiro capítulo, não é um policial e que ousa mostrar um lado menos idealizado que o habitual dos anos de chumbo da ditadura brasileira, sob o prisma de pessoas normais cujos caminhos acabam se cruzando por força de um improvável acaso.

Cabra-cega, vencedor do prêmio Jabuti de 1999, é um romance que retoma o tema do confronto entre a alienação e o esvaziamento das consciências daquele período sem, no entanto, permitir-se ao óbvio maniqueísmo recorrente nas obras que tratam o tema. Só por isso, no mínimo, já o faria credor de algum respeito. Mas há mais no livro para recomendar sua leitura. Um dos pontos altos é mostrar uma história sem vilões – nem o cruel matador que fornece o fio da trama o é. Na trama, o personagem do assassino John Inward não só surpreende ao longo do enredo como ajuda a conferir um discreto ar de realismo mágico. Nascimento Silva também não criou mocinhos. Até mesmo porque não há nenhuma polarização nem referência aos conceitos tradicionais de bem e mal. Há, sim, apenas pessoas normais, cotidianas, cujo único defeito talvez seja às vezes uma irritante ausência de contornos definidos. Suas personalidades mal são delineadas, o que pode exigir do leitor uma atenção maior à medida que as vidas vão se interligando. Pode ter sido esta a intenção do autor – deixar seus personagens envolvidos numa bruma de abstração –, mas com certeza eles poderiam ter sido mais bem trabalhados.