A segunda parte do programa Raw is War, de luta livre, estava começando, no último domingo 23. As 14 mil pessoas que lotavam o estádio Kemper Arena, em Kansas City, vibravam com Blue Blaze (o Labareda Azul), um brutamontes explodindo dentro de um macacão spandex da cor do céu. A estranha figura descia do teto do ginásio atado a um cabo de aço. No meio do trajeto, o herói mascarado despencou. "Eu pensei até que era um boneco", diria depois o garoto Mark Duffy, testemunha do vôo. Na verdade, quem havia se esborrachado no canto do ringue era mesmo Owen Hart, 33 anos, astro de uma família de lutadores da cidade canadense de Calgary, a que pertence também seu irmão Bret, "The Hitman". A caminho da lona, despencando de uma altura de aproximadamente 13 metros, ele bateu com a cabeça numa das pilastras no canto do tablado. Em pouco tempo estava morto.

Os paramédicos tentaram durante meia hora ressuscitar o Labareda, sob os apupos de uma platéia em delírio. Foi preciso repetir várias vezes pelo sistema de som, que aquilo – "por Deus!" – era para valer. Mas como esperar que a turma caísse na real, se todo mundo ali sabia que o mundo da luta livre é feito de marmelada? Tanto que, uma hora depois do incidente, as refregas entre homenzarrões fantasiados recomeçaram como se nada houvesse acontecido. Afinal, o espetáculo não pode parar, especialmente quando se trata do maior fenômeno de audiência dos Estados Unidos e que atrai 35 milhões de telespectadores semanais. Somadas, as duas empresas que promovem o telecatch – a líder World Wrestling Federation, dona do passe do finado Labareda, e a World Championship Wrestling, criada por Ted Turner – produzem 15 horas de show a cada sete dias. Esta maratona é transmitida para 120 países e traduzida em 11 idiomas. Trata-se de uma revolução em forma de opereta pós-moderna e que mistura rock, erotismo baixaria, mais baixaria, muita vulgaridade e porradas de mentirinha. Do jeito que o povo gosta.

 

Absurdo Os 850 mil espectadores que juntos desembolsaram US$ 30 milhões para assistir via tevê a cabo ao espetáculo de domingo em Kemper Arena acabaram perdendo a maior emoção da noite. A telinha não mostrou a morte do lutador. Enquanto Labareda morria, o pessoal assistia em casa a um compacto com os melhores momentos de sua vida. Ele era uma espécie de mocinho num mundo de bandidos. Dentro da lógica surrealista dos roteiros dessa novela apocalíptica que é o novo telecatch americano, a moralidade das histórias que acompanham os embates é para lá de nebulosa. Pegue-se o exemplo do maior ídolo do momento – o Stone Cold Steve Austin (o apelido homenageia seu jeitão cool). Ele tem uma cabeça lisa como uma bola de bilhar, a careca brilha em contraste com o cavanhaque rente, vive tomando quantidades industriais de cerveja, usa jeans e camiseta. É o arquétipo do chamado "white trash" – os brancos pobres e sem classe do interior dos Estados Unidos. Essa gente, sabe-se, é dada a curtir um racismo bravo. Pouco chegado a um multiculturalismo: Stone Cold adora dar porrada em gente de pele escura.

Dos punhos de Stone, diga-se, não escapa nem mesmo seu patrão, o mestre criador deste universo distorcido. Vince McMahon Jr. há 15 anos vem desenvolvendo o fenômeno que ele chama de "atletismo de entretenimento". E desde o começo dos anos 90 seus espetáculos trocaram o confinamento nas telas de adolescentes caipiras pela sala de estar de jovens universitários e até de um número cada vez maior de profissionais liberais urbanos e endinheirados. Seus patrocinadores – no início pequenos negociantes com anúncios de secos e molhados – hoje são as grandes corporações. Ganha dinheiro da Coca-Cola, da ITT e de várias outras empresas da lista das 500 maiores da revista Fortune. E McMahon, o tipo de empresário que põe a mão na massa e dá pé-de-ouvido, ao pé da letra, entra no ringue e parte para o pau. Nos roteiros de sua WWF, vestindo ternos Armani, ele incorpora o vilão e vive perseguindo Stone Cold e outros ídolos.

 

Rock e pancada Para entender melhor a ressurreição da luta livre, é preciso esquecer antigas fórmulas. Os brasileiros ainda se lembram do famoso Telecatch Montilla, onde imperavam Ted Boy Marino (leia quadro à pág. 90), Índio Paraguaio, Tigre Saltense e o supremo Fantomas. Estes eram homens usando ceroulas, que se engalfinhavam num tablado. Entre suas atrações estavam aquilo que os locutores chamavam de "harmeloques", na certa uma corruptela da expressão arm lock, ou chave de braço. Todos esses ídolos viveram no período jurássico de um esporte de faz-de-conta. Hoje, nos Estados Unidos, a coreografia da violência é elaboradíssima e procura agradar a multidões que querem beber sangue. As roupas rivalizam com as dos ídolos pop e as dos super-heróis. Um leque de complicados enredos permeia as batalhas. "O que fizemos foi juntar as histórias em quadrinhos com rock-and-roll. Colocamos pitadas do humor e da violência dos desenhos animados e mais um bocado de sexo, com mulheres bonitas participando das histórias", disse Vince McMahon por telefone a ISTOÉ, na semana passada. "A World Wrestling Federation é novela com porrada", sintetiza, para definir o grotesco gênero que ele ajuda a promover. Além da renda das lutas, composta pela bilheteria, pelos assinantes de serviços pay-per-view e pelos patrocínios, a federação fatura milhões de dólares com a venda de roupas, brinquedos e adereços com a marca dos principais lutadores de catch.

Sobre o acidente com Labareda Azul, McMahon diz que as investigações ainda não foram concluídas e garante: "Nosso trabalho é a fantasia, nunca escondemos que a violência é um faz-de-conta. O único sangue que despejamos no tablado é feito com tinta vermelha. A morte do Labareda foi um acidente que nos chocou muito. Somos o contrário da morte", disse com a voz embargada depois de mais um festival de pancadas que lotou as 20.276 cadeiras do estádio First Union Center, na Filadélfia. No enredo daquela noite, uma homenagem comoveu a malta: todos os inimigos de Labareda foram surrados impiedosamente, em reverência ao falecido.

 

O bem contra o mal

Limão nos olhos, surras de cinturão, supercílios cortados com gilete. O juiz fingia que não via, o vilão aproveitava para bater no mocinho e o público, enraivecido, gritava e jogava sapatos e guarda-chuvas no ringue. Quando tudo parecia perdido, o bonzinho recuperava as forças, aplicava uma série de tesouras voadoras no malvado e vencia a luta. Era assim a versão brasileira das luta-livres, que alavancaram a audiência das tevês Excelsior, Globo e Tupi na década de 60 e início de 70. O grande herói dessa modalidade era Ted Boy Marino, um italiano que desembarcou em Buenos Aires aos 12 anos e no Brasil aos 24. De cabelos loiros e porte atlético, um precursor de He-Man, ele derrotava vilões como Rasputin, Verdugo, Mongol, Diabo Branco e Barba Negra, todos obesos e repugnantes. Depois que o gênero passou de moda, Ted Boy, que chegou a fazer parte da primeira formação dos Trapalhões, começou a se apresentar em clubes e teatros do interior e fazer pontas em programas humorísticos como a Escolinha do Professor Raimundo. Há dois anos e meio sem gravar, ele acaba de ser demitido pela vice-presidente de Operações da Globo, Marluce Dias, aos 59 anos e a dois da aposentadoria. "Estou negociando com o Sérgio Mallandro uma volta do telecatch", conta Marino, que por alguns anos foi dono de churrascaria no Rio. Os telecatches ainda tiveram sobrevida. No final dos anos 70, passaram a ser transmitidos na Bandeirantes e na metade dos 80, na Record. Durante cerca de um ano, até pouco antes da Copa da França, eram uma das atrações do programa de domingo do Ratinho, em uma versão mais televisiva, com modernas técnicas de iluminação e de corte de câmera. Não era a mesma coisa. Lutadores como Aquiles, o Homem Montanha e a Múmia empolgaram a platéia, mas jamais chegaram aos pés do inigualável Ted Boy Marino.