A anunciada intenção do governo federal de proibir a venda de armas em todo o território nacional, que até há pouco tempo parecia ter apoio unânime, fez vir à tona os integrantes de um lobby até então quase desconhecido. São os fabricantes, comerciantes e usuários que, por diversos interesses, brigam pelo direito de todo cidadão andar armado para defender-se de criminosos. Normalmente discretos, nos últimos dias eles iniciaram uma artilharia para tentar barrar a proibição, sustentada várias vezes pelo próprio presidente Fernando Henrique Cardoso. "Nossa entidade foi criada há um mês com o principal objetivo de tentar evitar que essa lei seja aprovada no Congresso", confirma o industrial paulista Luiz Afonso Santos, diretor da Associação Nacional dos Produtores e Comerciantes de Armas (Anpca). Esse trabalho de bastidores já está rendendo frutos: na quarta-feira 26, os clubes de tiro e os atletas olímpicos passaram a ser a primeira exceção no projeto de lei do governo federal, por sugestão da Casa Civil da Presidência da República. "Isso é um absurdo. O projeto nem chegou ao Congresso e já começaram as modificações", reclama o antropólogo Rubem César Fernandes, coordenador do Viva Rio, ONG que tenta conseguir um milhão de assinaturas para enviar aos deputados e senadores em apoio ao fim da venda de armas.

O Congresso Nacional será o palco central onde os dois lados estarão medindo forças. Entre os parlamentares que são contra o projeto destaca-se o deputado federal Roberto Jefferson, líder nacional do PTB, que ficou conhecido por integrar a tropa de choque de Fernando Collor no Congresso na época do impeachment. Jefferson argumenta que não é a arma legal que faz o crime. "O cidadão de bem não vai ter como se defender dos bandidos", argumenta. O deputado petebista foi relator da lei de porte de armas aprovada em 1997, já presidiu a Associação de Armaria, Coleção e Tiro (Acolt) e orgulha-se de sua habilidade no manejo de diversos tipos de armas. Irônico, sugere um slogan para a campanha de desarmamento do governo: "Cidadão, desarme-se: morra indefeso." Do outro lado está o deputado federal Fernando Gabeira (PV), também do Rio, que já se acostumou a polemizar com o líder do PTB. "Jefferson discorda do projeto porque teme ser obrigado a entregar suas armas", brinca. Sobre o principal argumento do colega parlamentar, Gabeira afirma que o cidadão comum que é atacado por um criminoso está mais seguro quando desarmado. "As estatísticas mostram que a maioria dos cidadãos acaba assassinada com suas próprias armas, roubadas pelos agressores."

Pistola na cintura No grupo que joga contra o projeto, um dos principais nomes é o de Carlos Murgel, presidente da Associação Nacional dos Proprietários de Armas e Munições e dono da gaúcha Taurus, a maior indústria de armas do Brasil, que no ano passado exportou para 85 países um total de 187 mil pistolas e revólveres. A empresa conseguiu ocupar um grande espaço no mercado americano, tanto que abriu em Miami uma segunda fábrica, a Taurus International, que em 1997 faturou US$ 120 milhões. Atualmente, é a segunda empresa em venda de armas nos Estados Unidos. Murgel também é carioca, mas se mudou para o Rio Grande do Sul e em 1977 assumiu o controle da indústria para transformá-la no que é hoje. Sempre discreto e avesso a entrevistas, ele quebrou o silêncio para atacar os que querem a proibição do comércio de armamentos.

"Somos a favor do desarmamento, não pretendemos que todas as pessoas saiam na rua de pistola na cintura. Mas impedir a venda ao cidadão preparado que quer se defender é colocar a sociedade à mercê dos bandidos", diz o dono da Taurus. Para mostrar que a aprovação da lei não teria influência sobre a violência urbana, o empresário argumenta que nos últimos anos a quantidade de armamentos vendidos e de portes emitidos vem caindo, enquanto a criminalidade vem crescendo. Esses dados não parecem suficientes para conter a campanha de desarmamento que se espalha por todo o País, patrocinada pelo governo federal e por governadores e prefeitos. No Distrito Federal, o governador Joaquim Roriz (PMDB) sancionou a lei que proíbe a venda de armas em Brasília. No Rio, uma lei com o mesmo objetivo, de autoria do deputado estadual petista Carlos Minc, foi ardorosamente discutida na última semana, na Assembléia Legislativa. Em São Paulo o movimento é o mesmo. Na quarta-feira 26, a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro aprovou um projeto semelhante ao do vereador Áureo Ameno restringindo o uso de armas. "A lei orgânica já proibia esse tipo de comércio, mas faltava a regulamentação", explica. Segundo Ameno, o projeto dá um prazo de 60 dias aos estabelecimentos comerciais e de 180 dias para as indústrias encerrarem suas atividades. Apesar da aprovação pelos vereadores, o prefeito carioca Luiz Paulo Conde (PFL) preferiu manter um estranho distanciamento. Informou que ainda vai analisar o texto para decidir se vai sancionar ou não o projeto.

Um dos principais argumentos dos fabricantes, comerciantes e usuários de armamentos contra o projeto de lei do governo é que já existe uma legislação rigorosa que regula o comércio e a concessão de portes de armas, aprovada em 1997. "Na época, analisei 49 projetos e a Câmara aprovou uma lei muito dura", diz Roberto Jefferson. O coordenador do Viva Rio afirma, no entanto, que a regulamentação não saiu do papel. "A lei determinava que todos os proprietários deveriam recadastrar suas armas, a exemplo do que acontece com os automóveis. Imagine que no Rio de Janeiro apenas 1,5% dos armamentos registrados foi recadastrado", afirma Fernandes. O antropólogo considera que isso acontece porque os mecanismos de controle atuais são inócuos.

 

Calibre alto Para os lobistas a maioria dos crimes registrados pela polícia é cometida com calibres altos, que não são encontrados no comércio legal. As contas do Viva Rio, no entanto, são diferentes. "Realmente os crimes praticados com fuzis e metralhadoras têm aumentado de forma preocupante a ponto de os hospitais públicos serem obrigados a praticar medicina de guerra. Mas a maioria dos casos de violência ainda é causada por projéteis de pequeno calibre", afirma Fernandes. Mas, por melhor que seja a intenção dos que patrocinam a campanha de desarmamento, uma coisa é certa: os índices de violência urbana só voltarão a um padrão razoável quando as fronteiras forem efetivamente controladas e o contrabando de armas combatido com competência. Tanto assim que, antes mesmo de uma melhoria na atuação da Polícia Federal, os próprios governos estaduais pensam em tratar do problema. No Rio de Janeiro, a Secretaria da Segurança planeja criar uma polícia marítima, que controle a chegada de armas e drogas pelo mar. "É preciso saber que essa lei que proíbe a venda de armas não será uma panacéia. Mesmo se for aprovada, a criminalidade e o uso de armas vão continuar", admite Gabeira.

 

"Não tenho dinheiro para o porte"

O ator Gerson de Abreu, que já apresentou os programas infantis X-Tudo e Vila Esperança, foi detido pela polícia na semana passada por ter uma arma com o porte vencido. Após pagar uma multa de R$ 50, o ator foi liberado e afirmou possuir a arma para se defender nas viagens.

ISTOÉ – Há quanto tempo o sr. tem a arma?
Gerson – Desde 1993. Fiz curso de tiro.

ISTOÉ – E por que o porte não foi renovado?
Gerson – Estava muito caro, e eu não tinha dinheiro. Custa R$ 900.

ISTOÉ – O sr. tem arma para quê?
Gerson – Porque eu viajo muito de madrugada e fico com medo de ser assaltado na estrada. Imagine o que seria da minha família se acontecesse comigo o que ocorreu com o Gerson Brenner. Ele era da Globo, mas eu não teria como me sustentar.

ISTOÉ – O sr. é a favor da campanha de desarmamento?
Gerson – Sou a favor no caso de quem não sabe usar arma e de pessoas que possuem armas ilegais. É como no caso dos automóveis: quem não sabe dirigir não tem carta. E quem beber e dirigir vai preso. O resto pode ter carro. Na média, as pessoas que têm porte e arma registrada não cometem crimes nem fazem loucuras. Deve haver, no entanto, um controle maior mesmo de quem está dentro da lei.

ISTOÉ – O sr. tem medo da violência?
Gerson – Sim, e por isso saí de São Paulo e me mudei para o interior. Moro em Vinhedo. Fiquei chocado quando o ator Juca de Oliveira foi assaltado a um quarteirão da minha casa, nos Jardins.

ISTOÉ – Seu porte de arma vai ser renovado?
Gerson – Se eu conseguir dinheiro, vai.

GUSTAVO CHACRA