Um impasse paira sobre o Vale do Ivaí, no centrão do Paraná. Um grupo de sem-terra acaba de dar um ultimato ao fazendeiro Flávio Pinho de Almeida, dono da Fazenda Corumbataí, que hoje tem 5,8 mil alqueires, o que equivale a 14 mil hectares. Se o fazendeiro não retirar o gado de suas terras até o final de junho, milhares de nelore serão soltos pelas estradas da região. Apesar de estar com um mandado de reintegração de posse nas mãos, Pinho de Almeida não pode entrar na Sete Mil – nome popular da fazenda devido às suas antigas dimensões – desde agosto do ano passado. Na manhã de um sábado daquele mês, uma invasão parcial começada 16 meses antes se transformou em ocupação total. Na semana passada, decididas a continuar na fazenda, 650 famílias sob o comando do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) argumentaram que o gado é um "estorvo", pois pode pisotear a nova safra de feijão, que deve ser semeada no final de junho. Como as terras são suas e ele as quer de volta, o fazendeiro se recusa a esvaziar os pastos.

O gado, na realidade, está no centro de uma queda-de-braço sem previsão de término. O mais recente movimento da disputa quase colocou em risco a capacidade de os produtores paranaenses exportarem carne bovina, pois para isso é preciso que todo o rebanho do Estado esteja imunizado contra a febre aftosa. Disposto a fornecer as vacinas e os vaqueiros para arrebanhar e tratar o gado, Pinho de Almeida deslocou seu pessoal para o portão da Sete Mil na quinta-feira 20 de maio. Eles não conseguiram, porém, ultrapassar a entrada. Após quase cinco horas de negociação, intermediada pelo capitão da PM José Carlos Xavier, os sem-terra preferiram pagar a vacina a abrir caminho para os representantes do proprietário. Assim, os próprios sem-terra começaram a recolher o gado dos pastos e a ajudar os técnicos da Secretaria da Agricultura a imunizá-lo contra a doença. Até a quinta-feira 27, segundo levantamento da Secretaria, 3.675 cabeças haviam sido vacinadas. "O importante é que todos os animais sejam vacinados", afirmou o veterinário Antônio Sgobero.

Abate Ao término da vacinação, dez vaqueiros arregimentados pela Secretaria farão uma vistoria, para se certificar de que nenhum animal ficou sem a sua dose. Aí também será esclarecido outro impasse relativo ao gado, que está sendo marcado com tinta verde e contado. Pela contabilidade do fazendeiro, espalhados pelos pastos da Sete Mil devem haver cerca de oito mil cabeças de nelore, sem contar os bezerros nascidos a partir de dezembro, estimados em mil. No dia da ocupação total haviam 15 mil, sendo três mil de um arrendatário que os retirou logo após a invasão. Dos 12 mil restantes, o dono da Sete Mil levou 2.857 para terras arrendadas nas proximidades e 727 foram vendidas. "Há ainda 175 que conseguimos apreender fora da fazenda, antes de serem vendidas pelos sem-terra", garante Gilberto Pereira Martins, que gerencia a fazenda de Pinho de Almeida. "Nunca contamos pois a Sete Mil é muito grande, mas calculamos que devam haver umas 4.500 cabeças pelos pastos", contrapõe um dos coordenadores do acampamento, Vilmar da Silva. Ele refuta as acusações de venda de gado, mas assume que ocorrem abates, que teriam sido autorizados durante negociação no Incra, na proporção de três quilos de carne por família, semanalmente.

"Jamais autorizei nenhum abate", revida o fazendeiro. Seus problemas com a Sete Mil – que seu tio, José Avelino Pinho, comprou do grupo Barbosa Ferraz no começo dos anos 50 –, começaram em novembro de 1996. Na época, o Incra vistoriou 2,4 mil alqueires (5,8 mil hectares) da fazenda e os considerou improdutivos. Em abril do ano seguinte, os sem-terra, que estavam acampados nas imediações da cidade de Ivaiporã, a 18 quilômetros da Sete Mil, invadiram a área vistoriada pelo Incra. Sete meses depois, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou um decreto de desapropriação daquela parte da fazenda. Só que dois meses antes da ocupação total, o decreto de FHC foi derrubado pelo Supremo Tribunal Federal.

Dos 38 empregados fixos da Sete Mil, cinco continuaram na fazenda, com suas famílias, nos três meses seguintes à ocupação, cuidando de uma plantação com 60 mil pés de café. Passado esse período, receberam um prazo de 24 horas para deixar a propriedade ou aderir ao movimento. Todos preferiram sair. Com relação a seus bens pessoais, tiveram mais sorte que os outros empregados, cujas casas haviam sido vasculhadas e parcialmente saqueadas na invasão de agosto de 1999. Hoje, as antigas moradias abrigam salas de aula ou servem para atividades coletivas, pois as famílias continuam vivendo debaixo de suas barracas de plástico preto. O maior saque, aparentemente, ocorreu na casa do fazendeiro, que fica a dois quilômetros da sede administrativa. A construção está praticamente vazia, servindo apenas de espaço para brincadeiras dos garotos do acampamento. Os sem-terra garantem, no entanto, que o fazendeiro havia providenciado uma mudança do mobiliário pouco antes da ocupação. "Não retiramos nenhum objeto de lá", afirma Pinho de Almeida. "Fomos surpreendidos pela invasão e, agora, queremos que o governo cumpra a reintegração de posse, que já foi decretada pela Justiça." Essa possibilidade, no entanto, não é sequer discutida no acampamento. "Durante toda a campanha presidencial, Fernando Henrique repetiu que, a cada cinco minutos, um brasileiro era assentado. Chegou a vez dos nossos cinco minutos. As famílias estão decididas. Se tentarem nos tirar daqui, vai correr sangue", ameaça Vilmar da Silva.

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