Enquanto as indústrias fogem do berço da CUT, o presidente da Volks, Herbert Demel, quer investir na fábrica que hoje emprega 20 mil pessoas

Ele fala. Com um sotaque carregado, mas com uma fluência impressionante para um austríaco que completou apenas dois anos de Brasil. Ele fala com uma objetividade incomum para executivos de sua posição, que preferem acelerar nos gabinetes e pisar no freio em público. Ele fala que o Brasil precisa ser mais confiável, que acordos setoriais de curta duração não fazem sentido, que lidera o mercado brasileiro porque a concorrência é ainda pior. Como se vê, Herbert Demel, presidente da Volkswagen para a América do Sul, não tem papas na língua. Ao mesmo tempo que lança a terceira geração do Gol, o carro que representa 70% das vendas da montadora, Demel trabalha arduamente para que esta dependência de um único produto diminua. Para tanto, pilota um plano de investimentos que, a princípio, chegará a US$ 3,5 bilhões até o ano 2002. Inclui a produção do Audi A3 e do Golf na nova fábrica de São José dos Pinhais, no Paraná, além da criação de uma nova linha mundial de carros a ser lançada no Brasil no ano que vem. Seu grande projeto, no entanto, é a modernização da fábrica cinquentenária de São Bernardo do Campo. Ao contrário dos que fogem do forte sindicalismo do ABC paulista, Demel acredita na recuperação da região. E já vai colecionando bons resultados: em meio à crise, a Volks aumentou sua liderança no mercado.

ISTOÉ – A desvalorização cambial foi boa ou ruim para as montadoras?
Herbert Demel

 No momento foi ruim porque o mercado interno e os demais mercados da América do Sul caíram. É verdade que pode vir a ser uma ajuda a médio e longo prazo para nossa competitividade internacional, pois sabíamos que a moeda estava sobrevalorizada cerca de 20%. Era possível sentir isso no dia-a-dia, comprando frutas ou carros. Na comparação com outras metrópoles, São Paulo e as grandes capitais brasileiras estavam caras e ainda pagava-se mais por serviços piores. Ou seja, valor e custo não estavam equilibrados. Uma desvalorização pode contribuir para melhorar este equilíbrio. Só que tudo depende se a inflação for bem controlada a médio e longo prazo.
 

ISTOÉ – Mas já há sinais de que a inflação não vai disparar.
Herbert Demel

 Sim, mas o fato é que o efeito da desvalorização até o momento foi negativo e para o resultado do ano também será negativo.
 

ISTOÉ – Não teria sido negativo por que a indústria automobilística brasileira ainda vive uma transição entre um passado pouco competitivo e um futuro de maior atuação global?
Herbert Demel

Também por isso. Em todos os grandes mercados – e o Brasil, se não o é, tem potencial de ser um grande mercado – a indústria sofreria se houvesse uma queda forte do poder de compra da população. Em geral, uma desvalorização desta forma não pode ser festejada. Não é possível um país defender a estabilidade da moeda até o dia 12 de janeiro como seu maior objetivo e, no dia 13, virar 180 graus e dizer que uma desvalorização é o melhor que pode ser feito. Quer dizer, os mercados, especialmente na América do Sul, precisam aprender a se comportar de uma maneira mais confiável. Sem tantos terremotos. Com certeza, uma indústria mais competitiva internacionalmente seria menos afetada.

ISTOÉ – Por que a indústria brasileira não está mais avançada?
Herbert Demel

Ela está caminhando. A deficiência diminui continuamente. Para alguns fabricantes com mais rapidez, para outros com menos. Eu sempre digo que a Volks, apesar de não ser competitiva internacionalmente, lidera o mercado brasileiro por causa dos outros, que são ainda piores. Esta é a fotografia brutal da situação. Não estamos competitivos, estamos nos desenvolvendo para sermos competitivos.
 

ISTOÉ – Mas por que não estamos competitivos?
Herbert Demel

 Porque ainda temos reflexos dos tempos de inflação, quando todos gastavam o dinheiro no primeiro dia. E quem faz isso não tem condições de escolher. Até um certo nível a indústria se adapta a esta situação dizendo: "Ok, se tudo é comprado, por que não oferecer?" Se a competição cresce e o pensamento inflacionário diminui na cabeça dos compradores, automaticamente aumenta-se a demanda qualitativa dos clientes. Esta transição está nas mentes. Quem tinha 1.000% de inflação há cinco anos ainda não freou até hoje para zero. Você vê isso nas lojas, onde pessoas compram calças em seis prestações com juros extremamente altos.
 

ISTOÉ – A própria Volks se vale desta mentalidade ao ainda vender um utilitário como a Kombi.
Herbert Demel

 Para mim, não é a mesma coisa. A Kombi ainda serve como utilitário no mercado porque seu custo, simplicidade e robustez atendem a uma clientela com poder de compra limitado. Todos eles talvez sonhem com uma Sprinter, da Mercedes, ou uma Caravelle, da própria Volkswagen, mas não têm acesso. Isto faz a vida dos produtos velhos mais longa. Agora, veja o que aconteceu com os Asia e Kia. Aproveitaram uma desvalorização na Ásia, entraram no Brasil, prometeram investir e estão a caminho de sair do País. O cliente comprou num momento um produto melhor do que a Kombi, admito, mas já hoje alguns sofrem porque faltam peças, elas são caras, o valor do carro diminui rapidamente. Conclusão: alguns destes melhores se tornam piores do que certos cachorros velhos.
 

ISTOÉ – Não é só o poder de compra que conspira contra o consumidor brasileiro, mas nossa carga tributária.
Herbert Demel

 Claro, mas isto o cliente não sente. A carga tributária brasileira é incomparavelmente alta, cerca de 28,8% do preço de um carro, enquanto na Argentina é 17% e nos Estados Unidos, apenas 6,6%. Com certeza, a altura astronômica dos impostos atrapalha o surgimento de um mercado maior com os mesmos produtos ou de produtos tecnologicamente avançados com o mesmo mercado, tanto faz.
 

ISTOÉ – O que o sr. espera, então, da reforma tributária?
Herbert Demel

Eu não estou aqui como conselheiro do governo. Mas há algumas fraquezas óbvias. A quantidade do que é arrecadado é a metade do que deveria ser pago, ou seja, a sonegação é extremamente alta. O País não pode aceitar isso. Eu não quero competir com alguém, até mesmo um fabricante de peças, que não paga impostos. Todas as medidas que estão reduzindo um comportamento corrupto vão automaticamente reduzir a carga tributária. Ao mesmo tempo, é bom reduzir o peso dos impostos de uma maneira geral, parar com as cobranças em cascata, que aumentam custos desnecessariamente, mas, sobretudo, caçar quem não está pagando.
 

ISTOÉ – Por falar em impostos, o sr. é a favor de acordos emergenciais, como o que está em vigor até o dia 26, que reduziu IPI e ICMS em troca de estabilidade de emprego e preços?
Herbert Demel

 Eu não acho que contratos de duração tão limitada, como 60 dias, fazem muito sentido. Quando a desvalorização chegou e o real fugiu para o céu, foi fácil ver que o mercado ia cair fortemente. Nossas previsões de ter um ano semelhante ao passado, com cerca de 1,5 milhão de carros produzidos, foram revistas para algo entre 1 milhão e 1,2 milhão. O que acontece se é preciso adaptar a empresa a esta nova realidade? Primeiro, perdas financeiras são inevitáveis. Ok, nós até podemos suportar isso. Mas manter a mão-de-obra já é muito mais difícil. Se o mercado vai encolher, não podemos permanecer com o mesmo nível de trabalho. Podemos flexibilizar, mas já fizemos isso antes na Volks. Quer dizer, não há muitas saídas. Logo, o acordo serviu para mostrar aos políticos o que nós, indústria automobilística, achamos que vai acontecer. Nós não queremos demitir pessoal, o governo não quer, o sindicato não quer, os revendedores não querem, os fornecedores não querem… Havia uma plataforma básica dizendo o que precisaria acontecer para sustentar por um certo tempo este equilíbrio no mercado. O acordo teve outro defeito: foi publicado três semanas antes de ser implantado, o que desnorteou as vendas entre fevereiro e abril. Não faz sentido guiar uma economia em tão curto prazo.
 

ISTOÉ – O que fazer, então?
Herbert Demel

Para mim seria melhor que todos sentássemos e discutíssemos o que precisa ser feito para não demitir. É ter um mercado de 110 mil a 120 mil carros por mês? Certo. Agora vamos ver como cada lado vai contribuir para isso. Mas tem de ser todos os lados, sem exceção. Não pode funcionar se a indústria diz que vai aumentar continuamente os preços, se o governo fala que não vai diminuir impostos, se o sindicato exige garantia de emprego maior, aumento de salários…

ISTOÉ – Sem um mercado de 120 mil carros por mês, a redução de mão-de-obra é inevitável?
Herbert Demel

Sim. Mas redução pode ser flexibilidade de jornada de trabalho. É bem simples passar para os empregados a idéia: "Se tem crise, trabalhamos menos e ganhamos menos. Se o céu está azul, trabalhamos mais e ganhamos mais." Para mim é muito melhor encontrar esses caminhos do que demitir. Ainda é possível aumentar esta flexibilidade no ABC, pois o poder de compra aqui ainda é alto em comparação com outros pólos de produção. Com certeza é um sacrifício, mas é melhor o sacrifício distribuído de maneira igual do que decidir quem permanece, quem sai. Há muito mais injustiça dentro de um programa de demissão. Aplicam-se regras sociais, quem tem criança, quem não tem… Mas é um jogo bem sujo.

ISTOÉ – Agora, estes aumentos recentes eram mesmo necessários?
Herbert Demel

 A indústria já perdeu em 1998. Diria que perdeu com a produção e ganhou com serviços financeiros, o que praticamente zerou a conta. Nos primeiros três meses deste ano, perdemos brutalmente, num patamar que não pode ser suportado a médio prazo. Afinal, se você pára de investir, está cortando o futuro. Por isso, nós insistimos em aumentar os preços. Nós anunciamos isso antes de fazer o acordo emergencial, avisamos que iríamos sustentar preços por 60 dias, mas que seria inevitável reajustá-los. Depois, aparece outra das fraquezas do País: as negociações sempre começam cinco minutos antes da meia-noite e aí vêm com aquele nervosismo, dizendo: "Nós não estamos prontos." Não é assim que adultos tratam adultos. Todo o teatro em torno da renovação do acordo foi desnecessário.
 

ISTOÉ – Como fica o mercado automobilístico do Mercosul diante da desvalorização brasileira?
Herbert Demel

 Quando se fala em Mercosul, trata-se de Brasil e Argentina. Para a indústria automobilística argentina, a desvalorização do real teve um impacto ainda maior do que para a indústria brasileira. Os custos já eram maiores lá e aumentaram ainda mais depois da desvalorização. Novamente não quero agir como conselheiro político, mas estou certo de que a atual situação não vai permanecer por muito tempo.
 

ISTOÉ – O sr. acha que é possível para a Volks competir de igual para igual com concorrentes que se beneficiam dos incentivos fiscais dos Estados?
Herbert Demel

 Sim. Nós temos uma marca que está dentro das cabeças dos brasileiros. Depois, quem investe nestes lugares são as novas marcas, que têm muitas dificuldades para competir. Falta posicionamento da marca, rede de revendas, infra-estrutura entre fornecedores e, às vezes, faltam os recursos para cumprir o que foi estabelecido. Eu não quero trocar de lugar com eles.
 

ISTOÉ – Com tantos competidores no mercado, a tendência é que cada montadora ofereça menos modelos aos consumidores do que no passado e, assim, concentrar forças nos carros-chefes?
Herbert Demel

Haverá de tudo. Com a competição crescendo, se tirarmos uma fotografia das marcas, a maioria não vai estar feliz. O mercado não permite usar 50% da capacidade instalada. Ou seja, no meio de uma crise econômica, enfrentamos em paralelo uma crise de competição. O que faz a vida brutal. Alguns vão produzir carros que terão menores volumes de vendas para usar a capacidade instalada. Vamos ter as duas formas de atuação. Ganhar dinheiro vai ser bem mais difícil, a maioria vai perder, será um processo de seleção terrível.
 

ISTOÉ – Por que a Volks ganhou participação de mercado em meio à crise e, entre janeiro e abril, abocanhou 31% de participação?
Herbert Demel

Nós continuamente melhoramos os produtos existentes. Não lançamos nada grande, mas trabalhamos fortemente dentro dos produtos, aprimoramos a oferta qualitativa, a relação preço/carro novo. Convencemos revendedores e clientela que um carro aparentemente mais caro pode se tornar mais barato.
 

ISTOÉ – O sr. acredita na recuperação do ABC paulista?
Herbert Demel

 Todos estes elefantes industrializados têm uma tendência de se desenvolver até um certo nível, perder competitividade com o tempo, provocar um sofrimento grande e, depois, se recuperar. As "Detroits" do mundo tiveram crises brutais, se reergueram e permaneceram "Detroits". Quer dizer, o ABC também tem um poder de se curar, precisa de algumas forças externas para ajudar na reação. Isto já está começando a acontecer.
 

ISTOÉ – Este é o seu maior desafio?
Herbert Demel

 É mais fácil fazer uma fábrica em Curitiba, a partir de um campo limpo, grama verde, mesmo que ela seja de última geração. É bem mais difícil reestruturar uma planta com 50 anos de idade. E é por isso que eu estou com meu escritório aqui e fugi do prédio central ao lado do aeroporto de Congonhas. Eu trabalho numa montadora, não quero ser controlador de vôo.