Na segunda-feira 17, o Coral Cênico de Saúde Mental Cidadãos Cantantes se apresentou no Centro Cultural São Paulo ao lado de atrações como o Madrigal En Canto, da Universidade Livre de Música, e o compositor Itamar Assumpção. O recital fez parte do evento que comemorou dez anos de luta contra os manicômios no Brasil, na semana passada, em São Paulo. Os aplausos de 400 espectadores emocionaram fortemente os integrantes do coral, não só pelo sucesso, mas também pela delícia de se sentirem acolhidos – experiência pouco usual em suas vidas. Loucos costumam ser trancafiados a distância ou são, no mínimo, cuidadosamente evitados. Dentro de um mês, outro grupo de brasileiros olhados com receio vai viver seu grande momento – 67 atletas embarcam no dia 21 de junho para os Estados Unidos para representar o Brasil nos Jogos Mundiais de Verão de 1999, nas cidades de Durham, Chapel Hill e Cary, na Carolina do Norte. Os jogos fazem parte das Olimpíadas Especiais, criadas há 30 anos para melhorar a qualidade de vida de deficientes mentais.

Iniciativas assim impulsionam uma causa que tem atraído cada vez mais adeptos, a inclusão social de indivíduos marginalizados por diferir da maioria. Elas difundem a idéia de que diferenças não justificam supressão de direitos e evidenciam que somos, afinal, mais semelhantes do que pensamos. "Há um louco dentro de cada um de nós e nas pessoas mais sadias eles burlam os controles e criam coisas maravilhosas", lembra o psiquiatra e psicanalista Nelson Carrozzo. "Em diferentes graus, todos temos habilidades e deficiências", diz o professor de Educação Física Vinicius Savioli, 32 anos, técnico da equipe brasileira de futebol nas Olimpíadas Especiais. Em suas atividades de treinador, ele tem sido testemunha – e agente – de grandes conquistas. Uma das preferidas de seu repertório é a história de Emília.

Desafio Encarregado de formar uma equipe de patinação no gelo para as Olimpíadas Especiais de Toronto, marcadas para fevereiro de 1997, ele fez uma proposta ousada à mãe de sua aluna de natação na Associação de Pais e Amigos do Banco do Brasil, ApaBB. Queria que Emília, então com 13 anos, participasse da equipe. A mãe dela, Berenice Souza, mal pôde acreditar. Com o lado esquerdo do cérebro paralisado, ela lutou desde os primeiros dias de vida contra a atrofia de todo o lado direito do corpo e contra graves dificuldades cognitivas. Deslizar no gelo apoiada sobre uma lâmina pareceu-lhe uma tarefa insana para alguém como sua filha, que só andou aos três anos e apresentava o pé, a perna, o braço e a mão direitos curvos e contraídos. "Deixa comigo", insistiu o professor Savioli. Dois meses depois, as patinadoras brasileiras apareceram em público pela primeira vez. As cinco outras garotas, portadoras da síndrome de Down, deslizavam suavemente. Emília vinha atrás, avançando em pequenos solavancos. "Parecia uma patinha", comove-se a mãe. Mas, diante de seu esforço e de sua alegria de estar de pé sozinha, o estádio veio abaixo e ela garantiu seu lugar na delegação. "Emília ganhou em auto-estima e sentiu muito orgulho de carregar a bandeira do Brasil em Toronto", relata Berenice. Ela ganhou uma medalha de prata e uma de bronze. Com o exercício. A curvatura da perna e do pé direitos suavizou-se visivelmente.

Realizadas uma vez por ano, as Olimpíadas Especiais são o ponto alto de uma programação ininterrupta de treinamento que ocorre em 150 países e atinge 1,2 milhão de atletas. No Brasil são 15 mil, em nove Estados. Com a ajuda de patrocinadores, as Olimpíadas treinam técnicos e professores, que se tornam voluntários da instituição. Novos apoios vão permitir criar mais núcleos e ampliar a programação. O mais recente patrocinador é o Sam’s Club, a ala atacadista da cadeia Wal Mart cujos oito mil associados vão engajar-se numa campanha de divulgação e de arrecadação de fundos. Os atletas são reunidos por habilidades. Quem não consegue jogar uma partida de futebol, mas sabe chutar a gol, só compete com outros jogadores que também se limitam a chutar a gol. "As vitórias de nossos atletas são sobretudo contra suas limitações", diz Vanilton Salvatore, diretor nacional das Olimpíadas Especiais no Brasil.

 

Truculência No caso dos loucos, além de dores internas, eles enfrentam uma política de saúde truculenta e ultrapassada, contra a qual lutam seus familiares, a comunidade científica, os sindicatos e as Ongs. Reunidos na semana passada, eles relataram experiências bem-sucedidas de tratamento em regime aberto e reforçaram seus argumentos a favor do projeto de lei do deputado Paulo Delgado, que extingue os manicômios. "O País gasta cerca de R$ 400 milhões por ano com internações, que não curam nem reduzem o sofrimento", diz a psicóloga Isabel Cristina Lopes. "Por muito menos, seria possível criar uma rede de ambulatórios, hospitais gerais e hospitais-dia, como os criados na gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo", ela sustenta. Segundo a psicóloga, 25% dos internos em hospícios no Brasil estão em isolamento há mais de cinco anos, mas com tratamento sairiam do surto rapidamente. Participante do evento, o Instituto A Casa, fundado há 20 anos, em São Paulo, é uma referência em reintegração social de loucos. A Casa mantém hospital-dia, serviço de acompanhamento terapêutico, moradias assistidas e um núcleo de preparação para o trabalho. A atividade artística tem produzido ali bons resultados, como o grupo teatral Ueinz, de pacientes, que apresentou no ano passado o espetáculo Dédalus, em temporada regular, com sucesso de crítica e de público. "Eles passam a ser os autores de uma obra, e não os portadores do distúrbio", aponta o psiquiatra e psicanalista Nelson Carrozzo. A Casa mantém um curso de habilidades sociais para pacientes que já podem trabalhar e se relacionar, mas se sentem inadequados. "Quanto mais demorada a reclusão, mais retraído o paciente se torna para conviver", explica Carrozzo.

 

Pesadelo

Um pai encontra maconha no quarto do filho de 17 anos, fica chocado e um amigo policial sugere uma internação urgente. É com este enredo quase inverossímil que começa o drama do ator e escritor paranaense Austregésilo Carrano, 42 anos. Ele ficou internado em manicômios do Paraná dos 17 aos 20 anos, submetido a eletrochoques, coquetéis dopantes e camisas-de-força. "Acabei me tornando um paciente crônico, justamente o que se busca numa instituição desse tipo, que não visa à recuperação. A pessoa perde a identidade e torna-se uma besta humana, controlada por remédios e torturas." Em três anos, Carrano passou por 21 sessões de eletrochoques. "O objetivo era a convulsão. Mesmo quando a gente desmaiava, eles continuavam a aplicar o choque com voltagem maior, até 460 volts, em uma sensação agoniante, de morte", relembra. Autor do livro Canto dos malditos, Carrano move uma ação inédita contra o Hospital Psiquiátrico Bom Retiro, onde ficou internado. Se for ganha, parte da indenização de R$ 10 milhões será destinada a criar uma fundação de auxílio a ex-pacientes de manicômios. "São pessoas que nunca têm o direito de falar." Com base em seu livro e adaptação de Marcelo Rubens Paiva, um filme, Bicho de 7 cabeças, começa a ser filmado em outubro pela diretora Laís Bodanzky. Para Carrano, o filme poderá mudar a situação da psiquiatria no Brasil. "O eletrochoque é uma prática criminosa, que deve ser punida", afirma.

Chantal Brissac