É possível que o maior desatino praticado pelo dramaturgo, romancista e contista baiano Alfredo de Freitas Dias Gomes tenha sido cometido no dia em que quis ser militar. De temperamento inquieto e confessadamente indisciplinado, ele não tinha nada em comum com o ambiente rígido da caserna. A aventura entre fardas daquele que seria o novelista mais popular do País durou apenas dois meses, período em que permaneceu na Escola de Cadetes de Porto Alegre, após abandonar o terceiro ano de Direito no Rio de Janeiro. No curto espaço de tempo ainda ficou 15 dias atrás das grades, cumprindo castigos por rebeldia. Como era impossível moldar o aluno às regras espartanas, um comandante mais sensato o chamou e disse: "Já vi muita falta de vocação para a carreira militar, mas como a sua jamais. Quer um conselho? Vá embora." O apelo foi prontamente atendido. Afinal, na época ele já sabia o que queria. Vivia a escrever sem parar. Não só porque tinha enorme talento para contar histórias, como também era movido pela estranha premonição de que morreria jovem. A suspeita não se concretizou. Mas Dias Gomes poderia escrever muito mais. Na terça-feira 18 sua carreira foi interrompida, aos 76 anos, por causa de um estúpido acidente automobilístico sofrido junto com sua segunda mulher, Bernardeth Lyzio, 36 anos, que escapou com vida.

O desastre aconteceu às 2h30 daquele dia, uma madrugada fria, depois de os dois terem assistido à ópera Madama Butterfly, retornado ao flat em que estavam hospedados em São Paulo e em seguida saído para jantar na cantina Famiglia Mancini. Dias e a mulher tinham reserva no restaurante, cujo maior atrativo é a eventual presença de celebridades e não exatamente a culinária. Dividiram um fettuccine ao molho branco com picadinho de filé mignon, beberam água e vinho italiano. Antes de sair, o dramaturgo posou para uma foto com o garçom-fã Geraldo Fialho Brum. Contrariando a vontade da mulher e a sugestão do garçom de pegar táxi de um ponto conhecido do restaurante, deu sinal para o primeiro que passava na rua. Sentaram-se no desconfortável banco de trás do Fiat Uno quatro portas e não colocaram o cinto de segurança. Quem estava no volante era Ozias Patrício Silva, 29 anos, motorista profissional há um ano, trabalhando numa frota há 46 dias e que nas horas vagas toca violão numa igreja evangélica. Bernardeth não gostou de Silva. Achou que "tinha cara de bêbado". No curto trajeto até o flat, ele parecia perdido, segundo Bernardeth, que compareceu ao enterro do marido numa cadeira de rodas, com o lábio ainda inchado por uma cirurgia plástica.

De acordo com o motorista, Dias teria pedido que fizesse uma conversão proibida na avenida Nove de Julho. Embora não tenha certeza, Bernardeth considera a hipótese improvável. Durante a manobra um ônibus atingiu violentamente o táxi lançando para fora o dramaturgo, que bateu a cabeça no muro que separa as pistas. Silva desceu do carro, levou as mãos à cabeça e não teve tempo de fazer nada ao ver o sangue de Dias Gomes tingir o asfalto. Ele teve morte instantânea. Bernardeth sofreu cortes no corpo e nos lábios. Em estado de choque, chorando muito, implorou que a tirassem de lá. Foi para o hospital sem saber que o marido havia morrido. Ozias Silva nada sofreu.

 

Projeto – A fatalidade tirou de cena o dramaturgo justamente quando ele alinhavava um projeto que exibia com grande entusiasmo. O diretor Walter Avancini esteve com Dias no sábado 15 para conversar a respeito da minissérie Vargas, ficção sobre o governo de Getúlio Vargas, escrita em parceria com o poeta Ferreira Gullar. "Ele estava avaliando se valia a pena fazer uma ampliação da minissérie de oito para 12 capítulos", contou Avancini, que fez um discurso improvisado no sepultamento a pedido dos filhos mais velhos do escritor, Guilherme, Alfredo e Denise, todos do casamento de 33 anos com a novelista Janete Clair, com quem teve cinco filhos, dois dos quais falecidos. Do casamento com Bernardeth nasceram Mayra, 11 anos, e Luana, oito. Até a morte de Janete, em 1983, Dias Gomes formou com ela o casal mais marcante da história da telenovela brasileira. Ela era uma espécie de tecelã do melodrama, enquanto ele investia em textos mais mordazes e inovadores. Nos anos 50, Janete chegou a assinar roteiros do marido para a televisão, tempo em que ele sofria perseguições políticas. Driblar a censura foi uma constante na sua carreira. As sistemáticas proibições da montagem de suas peças não o impediram de criar uma obra vasta e popular, tanto na tevê como no teatro, capaz de traduzir a vida brasileira com muito humor e uma visão crítica transparente.

 

O bem-amado – Embora tenha primeiro se projetado como dramaturgo – é autor de O pagador de promessas (1959), cuja adaptação para o cinema feita por ele levou o filme dirigido por Anselmo Duarte a ganhar a Palma de Ouro no Festival Internacional do Filme de Cannes –, Dias Gomes tornou-se conhecido como autor de novelas. Inventou tipos, expressões e histórias que talvez só encontrem paralelo em Jorge Amado, aliás seu grande amigo. Criou também alguns dos mais marcantes personagens dos folhetins. Em O bem-amado (1973), primeira telenovela em cores da televisão brasileira, consagrou Paulo Gracindo na pele do folclórico e ardiloso prefeito Odorico Paraguaçu, coadjuvado por Lima Duarte no papel do jagunço Zeca Diabo. Foi uma revolução. Dias Gomes ainda ventilou o gênero com sarcasmo e inteligência. Inquieto, inaugurou na tevê o realismo fantástico em Saramandaia (1977), na qual pela primeira vez se viram tipos bizarros como Dona Redonda (Wilza Carla), que explodiu de tanto comer, João Gibão (Juca de Oliveira), que voava, ou Zico Rosado (Castro Gonzaga), que expelia formigas pelo nariz.

São tipos inesquecíveis que não fizeram escola. Hoje em dia, por exemplo, é difícil encontrar alguém que lembre o nome da última novela das oito, o que torna a perda de Dias Gomes ainda mais sentida. Daniel Filho, o chefão da Central Globo de Criação, disse que com sua morte "fica faltando uma base cultural e dramatúrgica para a emissora." É verdade. Em sua vasta experiência, ele escreveu mais de 30 peças entre 1937 e 1988, além de romances e contos que o levaram a ocupar em abril de 1991 a cadeira de número 21 da Academia Brasileira de Letras. Também terminou sua autobiografia no ano passado, oportunamente batizada de Dias Gomes – apenas um subversivo. O título saiu de uma frase do ex-governador Carlos Lacerda, que em 1965 foi contra a liberação da sua peça O berço do herói, origem de Roque Santeiro.

 

Comunista – A vontade de incomodar era nata. Sua primeira peça, Pé de cabra, de 1942, encenada por Procópio Ferreira, foi proibida sob a alegação de que tinha inspiração marxista. "Imagine, aos 19 anos eu ainda era capaz de confundir Karl Marx com os irmãos Marx." Mas aprendeu rápido a diferença. Aos 21, enfileirou-se no Partido Comunista, embora numa autocrítica tardia, feita nos anos 70, tenha se reconhecido um péssimo militante. A biografia movimentada, cheia de lances curiosos, não lhe satisfazia por completo. Numa de suas últimas grandes entrevistas, dada a ISTOÉ em março passado, por ter se colocado em sétimo lugar na eleição de O brasileiro do século – categoria artes cênicas, afirmou que se arrependia de muita coisa. "Não sou daqueles que dizem que se nascessem de novo fariam tudo do mesmo modo. Arrependo-me de tanta coisa que tenho a impressão de ter vivido apenas um terço da vida que me cabia viver. Se pudesse, destruiria metade do que escrevi." O público não concorda.

Colaboraram: Celina Côrtes (RJ) e Gustavo Chacra (SP)

 

Hegemonia perdida

Sem Dias Gomes, a Rede Globo entra em uma nova fase, justamente quando a sua superintendente-executiva, Marluce Dias da Silva, volta a sofrer críticas ácidas. Depois de derrubar privilégios e reformular a administração da Globo, o que lhe rendeu ataques ressentidos, Marluce vivia uma trégua. Afinal, o aumento do faturamento garantiu dividendos aos funcionários. A concorrência, entretanto, se tornou acirrada. A Globo já perdeu uma fatia de 20% da publicidade para as rivais mais diretas, o SBT e a Rede Record, como informa o publicitário Lula Vieira. A situação piora ainda mais num momento em que as novelas globais sofreram uma queda de 30% na audiência em relação aos índices obtidos pelos textos assinados por Dias Gomes. Vieira prevê um período difícil.

Hélio Contreiras