Reginaldo é vizinho de Givanildo, que é cunhado de Jovailton, que recebe ajuda de Sueli, que é amiga de Mariano. E todos são desempregados. A epidemia de falta de trabalho que assola o Brasil chegou a tal ponto que, se estivesse vivo, Carlos Drummond de Andrade poderia muito bem fazer uma nova versão do seu clássico poema. Na Grande São Paulo, o índice de pessoas em busca do ganha-pão chega ao absurdo recorde de 20%, segundo o Dieese. Há 1,7 milhão de indivíduos na berlinda e a crise, que começou a se agravar em maio de 1997, abrange todas as classes sociais. Atinge a ex-empresária, o engenheiro formado e o metalúrgico. "Tem gente literalmente passando fome", afirma o deputado federal e ex-presidente da Força Sindical Luiz Antônio de Medeiros (PFL-SP). Os números parecem, enfim, sensibilizar o presidente Fernando Henrique Cardoso, que autorizou seu assessor Vilmar Faria a iniciar estudos para criar as primeiras frentes de trabalho de desempregados em todo o Brasil. A idéia, que se baseia numa iniciativa recente da Prefeitura de São Paulo, visa a empregar temporariamente um milhão de pessoas. Elas irão conservar edifícios públicos e estradas, limpar praças e ganhar um salário mínimo durante seis meses. Ao mesmo tempo, frequentarão duas horas diárias de cursos de requalificação. As negociações para a criação do programa começam na segunda-feira 24, em Brasília, e R$ 1,3 bilhão do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) pode ser gasto para tentar remediar a calamidade brasileira que hoje se chama desemprego.

Salário atrasado Não existe praticamente uma pessoa em São Paulo que não tenha um amigo ou parente em dificuldades. Na segunda-feira 17, Reginaldo de Aragão, 23 anos, foi ao sindicato dos metalúrgicos para assinar a homologação de sua saída da indústria de máquinas de serigrafia Spreafico. "O patrão atrasava até dez dias meu salário e eu me sentia desmotivado, tinha contas a pagar. Acabei demitido", afirma Reginaldo. O dono da empresa, Clemente Spreafico, explica que não paga em dia os empregados porque os pedidos caíram e seus clientes estão deixando de pagar as contas. "Nunca vi uma situação tão crítica", diz o empresário, que carrega no bolso um punhado de 15 cheques devolvidos. Reginaldo tem o primeiro grau completo e ganhava um salário de R$ 333. Assim como boa parte dos desempregados, pensa em montar um negócio próprio com o dinheiro da indenização de R$ 2,2 mil e não enfrentar mais os 90 minutos de ônibus lotado que levava da sua casa, no Jardim Zilda, na periferia de São Paulo, até o trabalho.

A periferia, como sempre, é o bolsão do desemprego. Vizinhos de Reginaldo passam o dia sem fazer nada, vagam à toa e jogam futebol. Givanildo de Santana, 24 anos, tem até uma formação acima da média dos amigos: completou o segundo grau. Mas o pai enfrenta problemas de saúde, voltou para a Bahia e o filho decidiu que vai acompanhá-lo. No sábado 15, diz que pediu dispensa do emprego noturno que tinha na engarrafadora de refrigerantes Spal, onde ganhava R$ 600. Aderiu a um programa de cortes que a companhia está estimulando devido à queda de consumo no inverno. "No verão, eles retomam as contratações."

 

Vive de bico A situação da família de Givanildo é muito complicada. Sua irmã Maria ganhava R$ 266 como cozinheira em uma escola particular e foi demitida em fevereiro porque o serviço passou a ser terceirizado. O que piorou muito sua vida, pois o marido, Jovailton dos Santos, está sem emprego desde o início de 1998. Especializado em funilaria, ele não consegue nenhuma vaga em oficinas. "Quem está neste ramo não sai de jeito nenhum porque sabe que o mercado está difícil." Jovailton tentou várias vezes trabalhar em outros ramos, como motorista, mas não deu certo. Hoje tenta sobreviver de bicos que faz na oficina de um amigo: "Mas o negócio vai mal e consigo ganhar no máximo R$ 100 por mês. Tenho um filho de sete anos e vivemos na pendura para comprar comida."

Por ser uma região muito carente, o Jardim Zilda recebe auxílio de pessoas da classe média que se reúnem na Paróquia São João Maria Vianney. Cerca de 160 famílias de desempregados, como a de Jovailton, recebem cestas básicas todo o mês. Mesmo sem trabalho, a ex-microempresária Sueli Giometti, 48 anos, é uma das pessoas que auxiliam os moradores. Teve uma confecção durante dez anos, chegou a ganhar R$ 2,5 mil por mês, mas em fevereiro de 1998 teve de fechar as portas. "Com o fim do negócio, procurei emprego através de amigos, mas a minha idade não ajuda", diz Sueli, que cursou até o terceiro ano da faculdade de Assistência Social. Para piorar a situação, o marido, um engenheiro, teve seu salário reduzido em 70% numa indústria de autopeças. Hoje ganha R$ 540. "A nossa poupança de R$ 40 mil foi para o espaço e tivemos também de vender um terreno em Americana." Sueli hoje está sem empregada e até o videocassete permanece quebrado. O consolo é que a filha Carla se formou em Odontologia e ajuda no orçamento doméstico.

Apesar das bravatas de Fernando Henrique a favor de que gente com 50 ou 60 anos continue no batente, a verdade é que não há trabalho para ninguém, muito menos para os mais velhos. Desde 1990, quando a indústria de plásticos Trol, do ex-ministro Dilson Funaro, fechou, o engenheiro Mariano Trecalli, 58 anos, amigo de Sueli, ficou sem salário. "Eu ganhava o equivalente a R$ 4 mil. Resolvi então passar a dar consultorias, mas hoje não consigo mais nada", lamenta. A reforma da casa no bairro do Brooklin foi suspensa, a família passou a ter empregada a cada 15 dias e Mariano sofreu ainda dois ataques cardíacos.

"Ela é o homem" A situação só foi remediada porque a mulher Ana Lúcia, que trabalhava como diretora do Tribunal de Justiça de São Paulo, se aposentou e hoje está montando um escritório de advocacia. Ganha cerca de R$ 4 mil por mês. "Ela é agora o homem da família", conta Mariano. O economista Paulo Sandroni, da Fundação Getúlio Vargas, lembra que as altas taxas de juros são o motivo da falta de trabalho, pois não há produção nem gente para consumir. Segundo ele, nem mesmo a redução recente de 27% para 23,5% ao ano ajudará na recuperação. É preciso um empenho maior do governo.

Colaborou Maria Fernanda Delmas