Existem poucos instrumentos da informática tão falados e tão pouco conhecidos – pelo menos no Brasil – como os cartões inteligentes (ou smart cards, em inglês). Inventados na França nos anos 70, eles são de plástico e têm as mesmas dimensões dos cartões de crédito. Mas em vez da tarja magnética no verso vêm com um chip dourado incrustado bem na frente, como se fosse uma jóia. Esse detalhe faz toda a diferença. É o que torna o cartão inteligente. No microprocessador pode-se armazenar, no mínimo, 100 vezes mais dados que nos cartões convencionais. Pense nas possibilidades: uma chapinha de plástico contendo todas as informações médicas, seus dados de identidade e um histórico da sua movimentação bancária… Já seria ótimo se ficasse nisso, mas há muito mais. Assim como ocorre com os chips para PCs, os dos cartões também vêm nas versões de memória e de processamento. Vale dizer: os smart cards são os menores e mais baratos computadores que há. Mas que ninguém se engane. Eles são computadores. Processam informações. A complexidade destas só depende da sofisticação do chip.

Em 1985, 16 milhões de carte à puce (ou cartão de chip, como são conhecidos na França) começaram a ser usados pelo sistema financeiro daquele país na autenticação de transações bancárias, exatamente a mesma função dos nossos cartões magnéticos. A diferença é que o microprocessador comporta diversos níveis de senhas e os dados nele guardados são criptografados, tornando as transações muito mais seguras, argumento fundamental para a sua adoção pelos bancos. Essas instituições não gostam de comentar, mas a verdade é que os cartões magnéticos são tudo, menos seguros. Como a tarja pode ser copiada ou adulterada, o rombo provocado por fraudes em todo o mundo supera a casa dos bilhões de dólares. E a incidência das fraudes cresce 10% ao ano, motivo pelo qual existiam em 1995 544 milhões de cartões inteligentes em circulação na Europa e Ásia. Em 1999, esse número vai atingir os dois bilhões e, de acordo com a consultoria americana Dataquest, em 2001 serão 3,4 bilhões.

"Estima-se que no Brasil ocorram US$ 300 milhões em fraudes com cartões magnéticos a cada ano", revela Fernandes Franhani Junior, gerente da Gemplus Banknote, joint venture de duas das maiores fabricantes de cartões com chip. "Enxergar o smart card só como proteção de fraude é muito pouco", argumenta Fernando Castejon Ferreira, diretor da Visa e responsável por sua implantação no Brasil. O projeto começou com um piloto em Campinas em 1996. De lá para cá, foram distribuídos na cidade 60 mil cartões de 14 bancos, usados em 1.200 terminais de loja. O cartão é de débito. O consumidor usa um terminal para carregá-lo com uma quantia sacada de sua conta corrente e passa a usá-lo no comércio, debitando o valor de cada compra do saldo gravado no chip. Quando este zera, é hora de recarregar. Além dos campineiros, os únicos clientes Visa com cartão inteligente são os quatro mil portadores do Platinum. Destinado ao segmento de alta renda, seu processador é sofisticado. Além de transações de débito e crédito, aciona programas de milhagem e de seguros. Mas a meta da administradora é substituir progressivamente todos os cartões magnéticos. "Não posso fornecer datas, mas vamos anunciar em breve nossa estratégia para o smart card em todo o País", revela Castejon. De fato, a adoção pelo sistema financeiro desse novo meio eletrônico de pagamento é iminente. O Bradesco tem seu projeto piloto em Itu (SP) e, em convênio com a Universidade de São Paulo, entregou aos estudantes e funcionários 80 mil cartões que servem como identificação de acesso às instalações, retirada de livros na biblioteca e pagamento de refeição no bandejão. No Paraná, o Banestado distribui seus cartões em Londrina e Curitiba, cidade com o projeto mais amplo em execução no País.

 

Crescimento Para os cariocas, o novo instrumento não é novidade. Desde agosto passado circulam na cidade maravilhosa 300 mil deles. Só que não servem para comprar e sim para armazenar pontos no programa de fidelidade da Smart Club. Sempre que se abastece o tanque num posto Shell ou se adquire um produto nas Lojas Americanas, por exemplo, o usuário apresenta seu cartão que é carregado com pontos. O mesmo procedimento vale na compra de uma passagem da TAM, no uso do cartão de crédito Bradesco ou quando se assina a tevê a cabo NET, outros participantes do programa. Paga-se uma taxa de adesão de R$ 9,90 e, atingindo determinado número de pontos, o cliente pode trocá-los por prêmios que vão desde um jantar até diárias em hotéis e uma passagem para Paris. "No Rio, mais de 40 empresas aderiram ao programa, entre lavanderias, farmácias, supermercados e restaurantes", diz Luiz Eduardo Ritzmann, diretor do Smart Club. Segundo ele, a empresa foi criada para dividir os custos de manutenção de um programa de fidelidade entre as companhias participantes. Em São Paulo, onde o cartão foi lançado na semana passada, a expectativa é distribuir dois milhões deles. "Até o fim do ano entramos na região Sul e em 2000 no Nordeste, em Minas Gerais e Brasília", afirma Ritzmann. Com a chegada do cartão de afinidade à capital paulista, quem acaba de aderir ao plano é a Telefônica, que vai dar pontos aos clientes que usarem seus serviços (e não os da Embratel) nas chamadas interurbanas no Estado de São Paulo. O próximo passo, pelo menos teórico, é a substituição dos cartões magnéticos dos orelhões por versões smart, usadas pela matriz da empresa na Espanha. As demais operadoras de telefonia do País devem seguir o mesmo caminho.

Parceria "O Smart Club é a maior aplicação do gênero no País", diz Sebastien Cano, diretor da Gemplus Banknote, fornecedora dos cartões de fidelidade que está instalando uma fábrica em Barueri (SP) para produzir um milhão de cartões ao mês. Entre seus clientes estão os grupos Ticket, que criou um smart card vale-combustível, e Cheque Cardápio, que fez o mesmo nos vale-refeições. Em Goiânia (GO), o Grupo VR começa a distribuir em agosto 700 mil cartões vale-refeição para uso em bares e restaurantes. "Vamos ganhar expansão nacional no ano que vem", diz Claudio Szajman, presidente da empresa. Para recarregar seus cartões, Szajman acertou uma cinergia com o sistema de transporte municipal, que também adere ao sistema de bilhetagem eletrônico. "O mesmo terminal que carregar passagens de ônibus vai carregar créditos de refeições", diz Szajman.

Nos transportes, o maior projeto em andamento no Brasil – e no mundo – é o da colocação de catracas eletrônicas nos 11.500 ônibus de São Paulo. Elas já estão em 1.527 veículos, que por enquanto operam com tíquetes magnéticos semelhantes aos do Metrô. O objetivo é passarem a trabalhar com smart cards. "Vamos tirar o dinheiro dos ônibus, elevando a segurança", diz Antonio Emiliano da Cunha, diretor da SPTrans, empresa que administra o sistema. O modelo adotado é do tipo sem contato, que não precisa ser inserido numa leitora. Possui uma antena embebida no plástico que capta sinais infravermelhos emitidos pela catraca quando se encontra a dez centímetros dela. O passageiro não precisa mostrar o cartão ao cobrador. Na verdade, ele nem precisa tirá-lo da carteira ou da bolsa. Ao passar pela catraca, essa o lê e debita uma viagem. "A velocidade de embarque vai aumentar de cinco passageiros por minuto, no caso do atendimento por cobrador, para 40 por minuto", diz Cunha. Os 22 mil cobradores, assegura Cunha, não perderão o emprego. Continuarão nos ônibus como fiscais para assegurar o pagamento da tarifa. "Mesmo hoje, com o tíquete magnético, tem gente que pula a catraca para não pagar." Mil pessoas testam os cartões na zona sul da cidade. A prefeitura investe US$ 60 milhões no projeto, que deve estar concluído em seis meses. Serão entregues ao todo dois milhões de cartões. Os dos estudantes não serão apenas de ônibus. Os pais poderão armazenar dinheiro para gastos com material e na cantina escolar.

Potencial "Não há metrópole com mais de um milhão de habitantes que não esteja adotando ou pensando em adotar o sistema", declara Marcelo Souza, da Schlumberger, que disputa com a Gemplus a liderança mundial na fabricação de cartões do mundo e também constrói sua fábrica brasileira. Para Souza, a adoção dos smart cards é um processo sem volta. "Em 2003, não teremos mais modelos com tarja." No total, os seis principais fornecedores mundiais erguem plantas no País. "Só na França, Alemanha e China aconteceu o mesmo, prova que a coisa vai deslanchar forte", acredita Claudio Kassab da Philips, fabricante dos chips. Kassab aposta que o mercado brasileiro atinja os 300 milhões de cartões por ano. Quando chegar nesse volume, haverá cartões multitarefa que a um só tempo funcionarão como vale-transporte, seguro-saúde, porta-dinheiro, estacionamento e milhagem. "Será preciso listar todos os serviços à disposição", prevê Castejon, da Visa. No final das contas, o smart card absorverá até mesmo o RG, o CIC e a carteira de motorista. Será o fim do reconhecimento de firma. "Os tabeliões é que não vão gostar", brinca Kassab.

 

Identidade municipal

Tudo começou em 1996 na área de recursos humanos da Prefeitura de Curitiba. "Tínhamos um centro de processamento de dados antigo e caro", conta a secretária municipal de Finanças, Dinorah Nogara, que gerenciava a área. Para sanar o problema, usou um recurso radical. Criou o Instituto Curitiba de Informática (ICI), que passou a administrar a folha de pagamento municipal. Na busca da melhor tecnologia para o serviço, resolveu-se usar os cartões inteligentes. "Nele, cada funcionário carrega eletronicamente consigo não apenas seus dados funcionais – que controlam entre outras coisas o cartão de ponto –, mas outras informações pessoais, como seu histórico de saúde", explica a secretária. Assim, durante uma consulta, basta o médico aproximar o cartão de um leitor ligado ao PC para ter a ficha do paciente. Se receitar algum medicamento, o funcionário precisa apenas levar o cartão à farmácia, que por sua vez registrará no PC a venda do remédio.

O próximo passo do projeto, que já saiu da fase piloto (foi testado por cinco mil funcionários), é permitir que os cartões façam e recebam os pagamentos de todos os cidadãos da cidade, como a tarifa de ônibus, já em funcionamento em algumas linhas. "Testamos a eficiência no transporte urbano com 500 alunos do segundo grau", diz Luiz Alberto Matzenbacher, diretor presidente do ICI.

A experiência positiva dos curitibanos com os smart cards correu o mundo. A prefeitura tem recebido convites para expor seu know-how em outros países. "Agora mesmo temos gente nossa em Chicago, cuja prefeitura está interessada em implantar lá o que fizemos aqui", conta Nogara. No Brasil, também, existem governos estaduais e municipais de olho na experiência curitibana. "O governo do Paraná está trabalhando nesse sentido", diz a secretária. Até mesmo a ministra da Administração, Cláudia Costin, manifestou interesse na idéia. A perspectiva visualizada por Matzenbacher é a de que, em menos tempo do que se poderia imaginar, esse cartão incorpore todo tipo de atividade e serviço utilizado pelo cidadão, como conta de banco, identidade, carteira de motorista, cartão de crédito. "Será a concretização da nossa idéia de um verdadeiro cartão-cidadão."

Norton Godoy, de Curitiba