Tem gosto diferente, não ruim, mas diferente, o café feito no vapor pelo ex-médico Farah Jorge Farah. Cirurgião bem-sucedido, há dez anos ele ficou conhecido nacionalmente por assassinar sua paciente e amante Maria do Carmo Alves Pereira e se tornar o protagonista de um dos mais famosos crimes cometidos no País. Depois de matar a amante, que não aceitava o fim do relacionamento, Farah a esquartejou em nove pedaços, a dissecou e ocultou as partes do corpo em cinco sacos de lixo no porta-malas do carro que tinha na época, um Daewoo. Detalhista, enquanto prepara o café na cozinha do pequeno sobrado de sua família, onde mora sozinho desde que deixou a cadeia em 2007, ele explica: “Sempre com duas fervuras da água, sempre com duas fervuras da água é que se faz o bom cafezinho.” Para quem o toma é impossível não perguntar, meio encafifado, que sabor forte e levemente apimentado é aquele. “Te peguei”, diz, exibindo um pequeno sorriso no rosto que aparenta mais do que os 64 anos de idade. “Eu sabia que ia estranhar. É khëil. Khëil. Uma sementinha de origem árabe que funciona otimamente como condimento.” Também é estranho o papel colorido, pedaço da embalagem de um pacote de salgadinhos, que Farah pendurou ao lado da lâmpada no teto do hall, com o objetivo de criar dois ambientes distintos. Um lado fica mais escuro, o outro mais claro. Nesse sobrado na Vila Mariana, na zona sul de São Paulo, o médico tem passado a maior parte do tempo, aguardando com ansiedade a realização de um novo julgamento com a esperança de ver reduzida uma pena de 13 anos de prisão. Ele deixou a zona norte onde vivia quando cometeu o crime. “Faz muito tempo que não passo por lá, virou um passado distante no qual fiz muita gente sofrer com o meu ato, sobretudo a mãe de Maria do Carmo e meus próprios pais.”

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HORIZONTES
Farah no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, com a indispensável
bengala devido à cirurgia do câncer próximo à coluna: aguardando
um segundo júri por ordem do Tribunal de Justiça

Quando sai de casa, Farah costuma andar a pé e de metrô, apesar da bengala obrigatória devido à cirurgia do câncer próximo à coluna vertebral e à hérnia que aperta algumas de suas vértebras. O automóvel Daewoo, onde ficaram os sacos com os pedaços do corpo de Maria do Carmo, não existe mais. Na garagem de um prédio onde mora sua irmã, Farah guarda a réplica de um Porsche que diz ter feito com as próprias mãos, com motor de Brasília sobre o chassi de uma velha Variant. Usa o carro raramente, apenas nos fins de semana em um ou dois quarteirões nas ruas vizinhas ao aeroporto de Congonhas. Dez anos o distanciam do crime, mas muitos ainda o reconhecem nas ruas que costuma usar diariamente para ir à Faculdade de Saúde Pública, na qual estuda. “Tenho ciência de que fui cassado pelo Conselho Federal de Medicina e não poderei atuar nessa área quando me formar, mas tenho paixão pela ciência”, afirma Farah. Ele caminha sempre cabisbaixo, mas bastam alguns passos a seu lado e é possível ouvir: “Olha o assassino.” Farah se limita a manter o passo. Se almoçarmos em sua mesa no restaurante árabe que frequenta perto de sua casa, perceberemos olhares de quina temperando amargamente a comida na qual ele capricha na pimenta. Na faculdade, recentemente, Farah abandonou o bandejão ao ouvir de colegas a frase de péssimo gosto: “Hoje tem picadinho de carne no cardápio.” Não, não tinha. Era macarrão. Quando ouve coisas assim, Farah fica casmurro. “Na verdade, há dez anos estou casmurro. Vez ou outra saio com uma antiga amiga para jantar, visito minha irmã aos domingos. Quase ninguém me telefona. Vivo isolado, desde aquela noite em que tudo virou breu.”

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Antes do “breu”, ou seja, do crime, o então conceituado doutor Farah possuía uma clínica na zona norte de São Paulo na qual se submeteu à lipoaspiração até uma ex-primeira-dama. “Isso é verdade, mas o nome dela não digo, médicos não pronunciam nomes de pacientes.” Agora, sem o título de doutor e estigmatizado publicamente, são outros o ânimo e o humor do clínico geral, endocrinologista, cirurgião plástico e cirurgião do trauma – após quatro anos de prisão preventiva entre 2003 e 2007 e aguardando em liberdade um segundo júri popular porque o primeiro que o condenou a 13 anos de reclusão, em 2008, foi anulado pelo Tribunal de Justiça. Farah é um homem ansioso à espera desse segundo julgamento ainda sem data marcada. “A palavra farah significa alegria, mas atualmente sou Za’al Jorge Za’al.” E o que quer dizer za’al? “Tristeza”. O autodiagnóstico de seu estado de espírito é ratificado por uma frequentadora de um salão de beleza que há nas proximidades de sua casa: “Ele é um poço de delicadeza e educação, sempre prestativo, mas é também um senhor muito acabrunhado e tristonho.”

Caiu num fim de semana o 25 de janeiro de 2003, data em que se comemora o aniversário da cidade de São Paulo. Na sexta-feira que o antecedeu, em sua clínica, Farah e Maria do Carmo brigaram pela enésima vez – ela não aceitava o fim do relacionamento, chegando a lhe telefonar 752 vezes num único dia (dado confirmado pela polícia e operadora telefônica). Em cada ligação vinham ameaças de morte a ele e a sua mãe, “uma santa em minha vida que infelizmente faleceu comigo preso”. Farah chora. Tantas ameaças à sua família provocaram “uma progressiva desestruturação de seus valores morais”, segundo laudos elaborados a pedido da Justiça. Na clínica naquela véspera de feriado, vazia já no começo da noite, Maria do Carmo estava armada com uma faca, Farah apoiado em sua bengala. Ela avança, ele dá-lhe a bengalada, ela bate com a cabeça na parede azulejada. Farah assegura que a partir daí “tudo ficou escuro”, que não lembra do esquartejamento e da ocultação do corpo, e só deu por si quando já internado num hospital psiquiátrico antes de ser preso.

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Os quatro laudos psiquiátricos requeridos pela Justiça apontam que Farah sabia que estava cometendo um crime quando matou, mas não tinha condições mentais de frear o ato. Os mesmos pareceres asseguram que estava sem condições psíquicas de compreender o esquartejamento e, por isso, concluem que ele deve receber tratamento ambulatorial. Aliás, haverá um novo julgamento porque, segundo o Tribunal de Justiça, no primeiro os jurados decidiram contrariamente a tais pareceres. “O modo de vida e a história de Farah mostram que a morte de Maria do Carmo foi um fato isolado. Basta ver tudo o que ele estuda”, diz o advogado Odel Antun.

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SOLIDÃO
Farah prefere ir a restaurantes quando eles estão
vazios: até hoje as pessoas o reconhecem nas ruas

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Além do curso na Faculdade de Saúde Pública, desde que deixou a cadeia em 2007 especializou-se em geriontologia, estudou filosofia e direito, hoje com a matrícula trancada. “Faltam recursos financeiros”, diz ele. Sem emprego, Farah nos últimos anos tem vivido com um auxílio da família. Há dois meses foi aprovado (nota sete e meio) no concurso para estagiário da Advocacia-Geral da União, mas para assumir a vaga terá de reabrir a matrícula no curso de direito.

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Quem quiser acompanhar Farah em seu dia a dia há de acordar muito cedo: “madrugo com as galinhas e durmo com as galinhas” – sete e meia da noite está na cama, rodando os canais de tevê ou lendo sobre ciência (acabou de estudar o livro “Quem Está no Comando”, do professor da Universidade da Califórnia Michael Gazzaniga, que questiona a tese do livre-arbítrio). Passeios? Isso fica por conta das idas à Igreja Adventista do Sétimo Dia, “e pouca gente sabe que continuo a ser evangélico mesmo tendo me convertido ao judaísmo”. E as sinagogas? “Não vou, embora eu tenha feito a circuncisão, ai que dorzinha…” Biologicamente, ajuda Farah a organizar a vida um antidepressivo que já o livrou do pesadelo que lhe era recorrente: “Eu subia uma rua muito escura e um homem trajado de preto descia em minha direção.” Vez ou outra, ainda quando sonha esse sonho sem sentido, mas desconfortável, Farah acorda de madrugada. Precisa relaxar: “Eu assisto aos desenhos animados da Pantera Cor de Rosa”.

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