Já passava das 9 horas da noite da quarta-feira 3 quando milhares de egípcios se reuniam nas ruas ao redor da Praça Tahrir, no Cairo, para acompanhar o anúncio do general Abdel Fattah al-Sisi na televisão estatal. Depois de quatro intensos dias de protestos contra o governo do muçulmano Mohamed Mursi e um ultimato de 48 horas do Exército, al-Sisi estava lá para anunciar o que os manifestantes queriam: a deposição de Mursi, a suspensão da Constituição e a convocação de eleições. Assim que o golpe militar se confirmou, a Praça Tahrir (a mesma que, em 2011, fora o centro das manifestações pró-democracia que derrubaram o então ditador Hosni Mubarak) explodiu em festa, com direito a exibições de fogos de artifício. Tanques e tropas militares cercaram o palácio presidencial e prenderam Mursi, o primeiro presidente da história do país eleito pelo voto direto. No dia seguinte, o juiz Adli Mohamed Mansour, chefe da Corte Constitucional há apenas dois dias, assumiu a Presidência interinamente. Aviões oficiais, então, fizeram acrobacias e decoraram o céu com fumaças nas cores da bandeira. Nas comemorações, o antigo líder da oposição, Amr Moussa, fez um exercício retórico para traduzir o espírito que tomou conta do país: “Não foi um golpe de Estado, mas um impeachment popular.”

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PIROTECNIA
Às 9 horas da noite da quarta-feira 3, fogos de artifício explodem na Praça Tahrir,
no Cairo, para festejar a queda do presidente Mohamed Mursi

No poder há apenas um ano, Mursi se tornou o grande foco de insatisfação popular ao concentrar o poder em seu grupo político-religioso, a Irmandade Muçulmana, e manter o país profundamente dividido. Seu capital político era limitado – ele só recebeu 51,7% dos votos no segundo turno –, mas isso não o impediu de aprovar da noite para o dia, em novembro, controversas emendas constitucionais. A decisão colocava seus decretos acima da Justiça e abria espaço para a instalação de um Estado islâmico e totalitário. O descontentamento só cresceu com as falhas do presidente em reformar a polícia e restabelecer a segurança, conter a alta no preço dos alimentos, os apagões elétricos e a escassez de combustíveis. Nesse cenário, a situação fiscal do país se deteriorou e o desemprego cresceu. “O problema de Mursi foi o que ele não entregou”, afirma Alexandre Uehara, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e diretor acadêmico das Faculdades Rio Branco. “Sua eleição gerou expectativa de reformas que não foram realizadas.” À ISTOÉ, Said Sadek, professor de sociologia política da Universidade Americana do Cairo, disse que a “situação política de Mursi era insustentável”.

Os eventos da semana passada são resultado de um complexo dilema. Para muitos egípcios, a Irmandade traiu o levante revolucionário que depôs o ditador Mubarak com a ajuda de jovens liberais. Para chegar ao poder, a Irmandade entrou no jogo democrático, mas, uma vez no comando, adotou as velhas práticas autoritárias da tradição islâmica. Sua agenda conservadora não respeita minorias, liberdades individuais e direitos civis. Temerosos de uma sociedade de domínio islâmico, os liberais laicos voltaram a recorrer aos militares, responsáveis por 60 anos de uma ditadura que estagnou o Egito. Em artigo publicado no jornal “New York Times”, o professor de relações internacionais da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos, Samer Shehata resumiu o estranho cenário. “O Egito tem um dilema: sua política é dominada por democratas que não são liberais e liberais que não são democratas”, escreveu Shehata. A Primavera Árabe e os gritos libertários da praça Tahrir estão embretados entre o golpismo militar e um sufocante fundamentalismo religioso.

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BOAS-VINDAS
Abaixo, manifestante cumprimenta soldado do Exército no Cairo e,
acima, o juiz Adli Mansour assume a presidência interina:
todos juntos contra a Irmandade Muçulmana

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Na ausência de meios oficiais, Mursi recorreu às redes sociais poucos minutos depois de a notícia de que não era mais presidente ter se espalhado pelo mundo. Uma mensagem atribuída a ele na conta da Presidência do Egito no Twitter dizia o seguinte: “O anúncio das Forças Armadas é rejeitado por todos os homens livres que lutaram por um Egito civil e democrático.” O porta-voz da Irmandade Muçulmana e conselheiro do Partido Liberdade e Justiça, Gehad El-Haddad, denunciou o imediato cerceamento à liberdade de expressão e disse que a primeira decisão militar fora o corte da transmissão de canais de televisão pró-Mursi. Agências internacionais reportaram a prisão de dezenas de funcionários de canais de tevê religiosos.

O futuro da Irmandade Muçulmana é uma incógnita. O golpe deu início à perseguição e prisão de centenas de seus membros e líderes. Surgido com o propósito de difundir os valores islâmicos, o movimento ganhou corpo ao realizar trabalhos sociais. Hoje, a Irmandade tem forte presença na sociedade civil, com representantes no meio empresarial, inteletual e político. Sua capilaridade vai além das fronteiras do Egito – há braços da Irmandade em países como Síria e Jordânia. Fundado por um professor em 1928, o grupo sobreviveu na clandestinidade a partir dos anos 50. Trinta anos depois, começou a se organizar politicamente e, com candidaturas independentes, conseguiu cadeiras importantes no Parlamento e em sindicatos. Com o fim da ditadura Mubarak, Mursi se tornou a face pública do movimento islâmico, a despeito de sua falta de carisma. Analistas políticos creditam sua vantagem na eleição do ano passado à rejeição a Ahmed Shafiq, candidato dos militares e premiê do antigo ditador, mais do que à sua aprovação. Na semana passada, a sede da Irmandade, no Cairo, foi invadida e incendiada.

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O cenário é tão confuso que as autoridades internacionais tiveram que promover uma esperta relativização de princípios para posicionar-se. O governo democrático dos Estados Unidos recusou-se a tratar a queda de Mursi como um golpe militar, pois, se fizesse isso, se veria obrigado a suspender a ajuda financeira ao Egito. O ditador sírio Bashar al-Assad, já sem qualquer constrangimento, comemorou a “derrota do islamismo político”. O vaticínio de Assad, no entanto, parece improvável. Mais de 90% da população do Egito é muçulmana e, nas eleições legislativas de 2012, os islâmicos capturaram dois terços do total dos votos. Se o Exército cumprir a promessa de transferir o poder após novas eleições, subestimar os muçulmanos seria um grande erro. Nem a volta da Irmandade deve ser descartada por ora. E se não cumprir? Os militares ficaram no poder entre 1952 e 2011 e, nesse período, perpetraram perseguições políticas e suprimiram a liberdade de expressão. A pergunta que permanece sem resposta é se o Egito está agora mais próximo da consolidação democrática do que estava antes. Isso só as ruas poderão dizer.

Colaborou Alan Rodrigues