Escritores não criam do nada: transformam o vivido em ficção, por meio de situações e personagens calcados na realidade. Na história da literatura, poucos fizeram coincidir em igual peso narrativa e experiência como o romancista americano Jack London (1876-1916), assunto de uma nova biografia, escrita pelo jornalista inglês Alex Kershaw. Abandonado pelo pai e criado pela mãe em um dos portos “mais depravados do mundo”, o de San Francisco, nos EUA, London se lançou em aventuras pelo mundo e depois as contou em livros, de forma direta e vigorosa. Não seria exagero dizer que a atual onda de relatos sobre explorações arriscadas e viagens exóticas que ocupam a lista dos best-sellers tem nos livros de London o pontapé inicial. Com a diferença de que o autor americano não se impunha desafios apenas com uma mochila de primeiros socorros: em sua bagagem sempre havia romances clássicos dos quais extraiu a lição de que escrever bem exige muita leitura.

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Em “Jack London: Uma Vida” (Benvirá), Kershaw quer mostrar que o escritor não é só um “autor de poucas histórias de cachorros” – sua obra mais famosa, “O Chamado da Selva” fala de um cão que abandona os donos para comandar uma alcateia de lobos. Essa nova biografia – e por isso London foi contemplado com uma infinidade delas – parte da ideia de que a sua curta existência (morreu aos 40 anos) foi muito mais intensa de que “duas centenas de contos, 400 peças de não ficção e 20 romances”, escritos em apenas 18 anos. Com acesso a cartas e documentos, Kershaw detalha a trajetória autodestrutiva do escritor, fazendo a via de mão dupla entre vida e obra. London se dizia “faminto” por experiências – e se mostrou insaciável. Ele começou a trabalhar cedo numa das épocas mais cruéis do trabalho assalariado e só via duas opções: ou exauria sua energia nos galpões mal ventilados (foi enlatador de conservas e pescados) ou se arriscaria em atividades de lucro fácil, como marinheiro ou caçador de ouro. A primeira via fez dele um socialista; a segunda, um autor de mãos calejadas.

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AMBIÇÃO
Jack London escrevia mil palavras por dia: para ele a disciplina
era o melhor método para tornar-se escritor

Aos 16 anos, vamos encontrá-lo como um pirata de ostras (roubava o marisco de criadouros particulares), operando no infecto porto de Barbary Coast. Com US$ 300, emprestados por sua ama de leite negra, ele comprou a corveta remendada Razzle Dazzle e passou a competir com imigrantes chineses e gregos mal-encarados. Sua beleza selvagem logo seduziu Mamie, “a rainha dos piratas”. O brigão French Frank não gostou e tentou afundar o seu barco: London o pôs para correr operando o leme com os pés e apontando a espingarda para o nariz do oponente. Leitor desde pequeno de Mark Twain, entre outros, London sabia que o crime não levava as pessoas muito longe e partiu para outra – essa história vai aparecer no livro “John Barleycorn”. Mais tarde, apelidado “jovem Johnnie”, lá está ele atrás de focas a bordo do navio pesqueiro Sophie Sutherland. Esses meses no oceano vão alimentar a obra “O Lobo do Mar”, cujo protagonista, Wolf Larsen, foi calcado no violento capitão Alexander McLean. “Ele detinha o recorde de mau caráter. Era conhecido como o pior homem, até onde pode chegar a violência física, entre os caçadores de focas”, escreveu London.

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NO LEME
London e sua mulher, Charmian, no navio Snark, que construiu
em 1906: viagem ao Pacífico Sul e inspiração para um livro

Colecionando histórias e aprendendo à luz de velas  a sonoridade das boas frases (“devorava” livros nas viagens), London só se tornou um escritor em 1899, após a passagem pelo Canadá, durante a famosa corrida do ouro. Voltou de lá com escorbuto, um saquinho de poeira dourada e a disposição de virar best-seller.  Consagrado aos 27 anos (é considerado o primeiro escritor-celebridade da história), ele escreveu um texto sobre como se dar bem na área:  “Trabalhe. Trabalhe o tempo todo. Descubra sobre este mundo, este universo e essa matéria. 

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E trabalhe por uma filosofia de vida.” Admirador do alemão Friedrich Nietzsche, London fez uma leitura equivocada da ideia de super-homem, aplicando ao corpo o que era uma matéria do espírito. O “atleta das letras”, que praticou boxe, esgrima, surfe e natação, teve um colapso dos rins provocado pelo alcoolismo e morreu devido a uma dose letal de morfina, que aplicava regularmente para aplacar as dores de uma artrose.

Fotos: Bettmann/CORBIS; Album/akg-images