De tempos em tempos surge uma nova promessa para aplacar uma das mais terríveis doenças da humanidade, o câncer. Três pesquisas publicadas na última edição da revista britânica Nature – uma das mais respeitadas na comunidade científica – injetaram ânimo novo na luta contra a doença que só neste ano deverá fazer dez milhões de vítimas no planeta, de acordo com a Organização Mundial da Saúde. Os estudos, realizados por instituições dos Estados Unidos e do Japão, adicionam peças importantes para a solução do complexo quebra-cabeça da doença. Mais do que acrescentar elementos na compreensão do mal, esses trabalhos mostram que a ciência está cada vez mais próxima de desvendar o problema na sua raiz. As descobertas decifram segredos do surgimento da enfermidade e da sua evolução. São enigmas presentes no DNA, o material que carrega o código genético no interior das células. A partir dos achados, médicos e cientistas reforçam a expectativa de conseguir combater o câncer o mais cedo possível, impedindo que a doença evolua para estágios nos quais é impossível controlá-la.

Dois dos estudos ajudam a elucidar o ainda pouco conhecido mecanismo da metástase pelo qual um tumor localizado se espalha pelo corpo. Quando isso acontece, os prognósticos são trágicos. Sabe-se que a grande maioria das mortes de pacientes com câncer ocorre por causa desse processo. Os dois trabalhos identificam os grupos de genes envolvidos na disseminação do tumor. Com essas informações, é possível desenvolver mecanismos para impedir a atuação desses genes, eliminando logo no início as chances de as células doentes se alastrarem pela corrente sanguínea e invadirem outros órgãos.

Uma das pesquisas foi conduzida pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Cientistas utilizaram uma técnica relativamente nova para desenvolver o perfil genético de melanomas cutâneos humanos (o mais agressivo tipo de tumor de pele). É como se eles tivessem tirado uma fotografia da base genética desse tipo de câncer. Os dados foram comparados com os de melanomas de camundongos. Nos casos em que ocorreu metástase nos roedores, notou-se a presença dominante de três proteínas – fibronectina, timosina e RhoC – produzidas pelos genes estudados. Delas, a mais importante é a RhoC, apontada como uma das principais comandantes do processo de disseminação das células doentes. “Os melanomas se tornaram 50 vezes mais agressivos com essa proteína ativa”, revelou o biólogo molecular Richard Hynes, da equipe responsável pelo estudo.
Com isso, os pesquisadores podem procurar uma maneira de “desativar” essas proteínas. “Mais cedo ou mais tarde, será encontrada uma substância capaz de desmantelar a atividade desses componentes”, afirma o cirurgião oncologista Francisco Belfort, especialista no tratamento de câncer de pele e médico do Instituto Brasileiro do Controle do Câncer (IBCC), em São Paulo. O outro trabalho foi desenvolvido por cientistas do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano em Maryland, nos EUA. A equipe também se debruçou sobre o melanoma e as causas de sua disseminação. O time encontrou cerca de 200 genes associados ao tipo mais agressivo desse tumor. “Por 100 anos olhamos para os melanomas com as lentes do microscópio e nos perguntávamos como tumores tão semelhantes podiam agir de modo tão diferente. Agora, usamos as lentes da genética”, afirmou Jeffrey Trent, um dos coordenadores do projeto (leia mais sobre terapia genética para câncer na pág. 51).

Semelhança – Os resultados obtidos são apenas o começo de uma empreitada difícil. “Não representam a cura da doença, mas sim uma etapa importante para a prevenção, o diagnóstico e o tratamento de tumores”, diz o bioquímico Andrew Simpson, inglês que chefia o laboratório do Instituto Ludwig de pesquisa do câncer, em São Paulo. No estudo da equipe do MIT, falta ainda descobrir se a agressividade dos genes encontrados nos camundongos é a mesma dos genes humanos. “Precisamos saber se esse mecanismo funciona do mesmo jeito em homens. Houve caso em que experiências feitas em animais pareciam promissoras, mas cujos resultados se revelaram conflitantes depois de testados em seres humanos”, pondera Antônio Buzaid, diretor-executivo do Centro de Oncologia do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo.

De qualquer forma, os estudiosos são enfáticos ao ressaltar a importância das pesquisas. Afinal, a metástase foi e continua sendo um dos grandes desafios para a medicina. Seu mecanismo, além de difícil entendimento, é cruel. Quando as células tumorais migram pelo corpo, elas não são identificadas pelas células de defesa e por isso podem se disseminar livremente. Como se não bastasse, elas têm a capacidade de atravessar a parede dos vasos sanguíneos para atingir novos alvos e de aderir ao tecido invadido. Por isso, a identificação dos genes é tão importante, já que desenha a primeira parte do caminho traçado pelas células no corpo.

Leucemia – Na terceira pesquisa publicada pela Nature, o alvo de estudo foi uma substância chamada maxizima. Cientistas da Universidade de Tóquio, no Japão, provaram que ela é capaz de tratar com sucesso a leucemia mielóide crônica (um dos tipos de câncer das células sanguíneas). A substância impede a produção de uma proteína fabricada por um gene defeituoso envolvido no surgimento do tumor. É como se ela “quebrasse” a máquina fabricante de um dos principais ingredientes deste câncer. Nos testes, todos os camundongos tratados com o produto sobreviveram. Aqueles que não receberam a substância morreram, apresentando metástase no baço, fígado, cérebro e nos rins. Além disso, o tratamento não apresentou toxicidade ou efeitos colaterais. No Brasil, os resultados foram comemorados. “O estudo é altamente promissor. Ao impedir a ação da proteína, pode-se atuar na origem do problema, aumentando a chance de cura”, afirma Olavo Feher, do Serviço de Oncologia Clínica e Transplante de Medula do Hospital do Câncer, em São Paulo. “Só não se sabe se todos apresentarão a mesma resposta ao tratamento”, pondera.

O especialista tem razão na cautela. Descobertas da medicina, em especial as que se referem a doenças tão devastadoras como o câncer, devem ser recebidas com serenidade. Uma terapia criada a partir dos resultados pode demorar, mas não significa que a esperança deva diminuir. “Pesquisas como essas são uma etapa importante na prevenção do câncer, uma vez que ligam determinados fatores à presença de alguns genes”, explica Andrew Simpson, ele próprio uma peça-chave no esforço brasileiro de mapear o genoma da Xylella fastidiosa, o amarelinho que destrói plantações de laranja. Ainda estamos longe da cura. Ao conhecer os genes relacionados à metástase, os médicos podem, isso sim, traçar um quadro mais preciso de cada paciente. “É um indicador para saber se uma simples cirurgia pode extirpar o tumor ou se será necessário intensificar a dosagem de quimioterapia, o que sem dúvida é um avanço no diagnóstico”, explica Simpson. “Não há dúvida de que o caminho é apostar na genética”, prevê o oncologista Francisco Belfort. O cirurgião Buzaid vai além. “Um dia, baseado no perfil molecular do paciente, o médico poderá fazer prognósticos de tratamento mais precisos”, conclui.

 

Fim do segredo

Poucos vírus assustam tanto quanto o Ebola. Na primeira vez em que ele apareceu, em 1976, no Congo, 88% das 318 pessoas infectadas morreram. No segundo surto, em 1995, o saldo foi igualmente aterrador. O vírus matou 81% dos doentes. Depois de sofrer febre e dores, as vítimas sangram até a morte. Na semana passada, cientistas americanos anunciaram a primeira vitória contra o Ebola. Equipes do Instituto Nacional de Saúde e do Centro para Controle e Prevenção de Doenças identificaram a proteína usada pelo vírus para provocar a hemorragia e o gene responsável por sua produção.

A façanha foi publicada na revista Nature Medicine.
Os pesquisadores encontraram a chave que dá início ao ataque do vírus. A glicoproteína destrói as células do endotélio, tecido que reveste a superfície interna do coração e dos vasos sanguíneos. É como se rasgasse os canais por onde o sangue circula, provocando a hemorragia. A partir da descoberta, uma das estratégias é criar drogas que bloqueiem a ação da proteína. É uma esperança contra um inimigo a respeito do qual até agora não havia arma específica.

 

A ameaça que sobrevive na água

 

Até a metade deste século, as doenças infecciosas provocadas por bactérias foram a principal causa de morte. Só as epidemias de cólera, praga e pneumonia dizimaram mais de um terço da população. Com o avanço das pesquisas científicas, surgiram vacinas e antibióticos mais eficazes. As condições de higiene e saúde pública também melhoraram, mas as bactérias não sumiram do mapa. Ao contrário, a cada nova geração elas ficam mais fortes, virulentas e resistentes. É o caso do Vibrio cholerae, o vibrião do cólera, que vive na água salgada, contamina alimentos e quando se aloja no organismo humano desencadeia um processo de diarréia tão voraz que pode levar à morte em menos de 24 horas. Alguns pacientes chegam a perder entre 15 e 20 litros de água num único dia.

Na semana passada, dois grupos de pesquisadores das Universidades de Maryland e Harvard, nos EUA, anunciaram com alarde um avanço na pesquisa e prevenção da doença, que aflige com maior intensidade os países subdesenvolvidos, onde as condições de higiene e saneamento são miseráveis. Depois de três anos de estudo, finalmente os cientistas conseguiram mapear o código genético da bactéria Vibrio cholerae, que só no ano passado infectou quase 300 mil pessoas no mundo, levando mais de dez mil pacientes à morte, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde. O estudo, também publicado na edição de agosto da revista Nature, revela algumas surpresas. Uma delas é a própria natureza destrutiva da bactéria, que carrega uma toxina para atacar a mucosa intestinal, provocando infecção e perda indolor de líquidos.
Ao mapear o código genético da bactéria, o equivalente a tirar a impressão digital, os cientistas descobriram que ela tem dois cromossomos em vez de um, como é comum entre as bactérias intestinais. No maior cromossomo estão arquivadas as informações vitais, como a toxina e a capacidade de reprodução. “Talvez esteja aí o motivo que faz o vibrião multiplicar-se com tanta rapidez a ponto de vencer o sistema imunológico”, supõe o infectologista Ricardo Diaz, da Universidade Federal de São Paulo. “Junto com a água, o doente perde sódio e potássio, importantes para manter o equilíbrio das células”, diz o médico paulista. “Se não receber soro e assistência imediata, o paciente morre entre seis e 24 horas depois do contágio”, explica Diaz.

A descoberta do genoma do cólera traz alguns benefícios imediatos. O primeiro é a possibilidade de compreender – e estudar formas de brecar – o mecanismo de reprodução das células. Com isso, fica mais fácil criar vacinas e drogas para controlar uma determinada propriedade do vibrião. Os pesquisadores vão concentrar-se nos 3.885 genes da bactéria para descobrir como o bicho sobrevive ao ar livre, na água contaminada, até ser ingerido pelo homem. Para os infectologistas, o sequenciamento representa um marco. As informações genéticas “já começam a trazer idéias para explicar como um organismo que vive no meio ambiente pode se tornar um patógeno humano, e isso vai acelerar o conhecimento sobre a doença”, prevê Claire Fraser, presidente do Instituto de Pesquisa Genética (Tigr). Para o currículo do instituto, o sequenciamento do genoma do cólera é apenas mais uma conquista. Mais precisamente, é o 26º organismo decifrado até hoje.

Darlene Menconi