Roberto Castro

VÍTIMAS André, Nathália e Paola (no sentido horário) sofreram ameaças e voltaram frustrados

Nove entre dez famílias brasileiras sonham um dia mandar seus filhos para o Exterior. Desejam que eles possam estudar, trabalhar, dominar mais de um idioma, conhecer outras culturas e que voltem qualificados para enfrentar um mercado altamente competitivo. É um desejo absolutamente legítimo, que tem se tornado cada vez mais possível. Nos últimos cinco anos, segundo pesquisa realizada pela Association of Language Travel Organizations, maior entidade de empresas de intercâmbio do mundo, o Brasil se transformou no quarto “exportador” de estudantes do planeta, responsável por 32% dos jovens que cruzam oceanos em busca de melhor formação, ficando atrás apenas de Japão, Espanha e Alemanha. No ano passado, pouco mais de 70 mil brasileiros deixaram o País em programas de intercâmbio. Para este ano, a estimativa é de que o número de brasileiros nesses programas supere os 94 mil. O problema é que o crescimento desse mercado trouxe consigo uma série de armadilhas até agora pouco conhecidas dos brasileiros. Ninguém está imune a elas e não são raros os casos em que o sonho se transforma em dramático pesadelo, com os jovens sendo submetidos a trabalho escravo.

ALOJAMENTO Quarto oferecido aos estudantes brasileiros: chão frio e muitas baratas

Extrovertida, alegre, filha de médicos bem-sucedidos, Nathália de Souza e Castro, 21 anos, desembarcou no aeroporto de Miami em 14 de dezembro do ano passado. Estava certa de que começaria ali a viver “os dias mais felizes de sua vida”. Na verdade, começava a protagonizar um filme de terror, como ela mesma define sua passagem pelos Estados Unidos. Queria aperfeiçoar seu inglês e conhecer uma outra cultura. Quando saiu do avião, Nathália ficou dez horas enclausurada dentro de uma van na companhia de outros brasileiros. Depois, todos foram levados ao Burger King. “Comam porque vocês não sabem a próxima vez que vão comer!”, gritava o motorista, um armênio chamado George, que de vez em quando dava um cascudo no seu auxiliar, o mongol Eddy. Quando deixou o Brasil, Nathália e outros estudantes de Brasília assinaram um contrato determinando que o grupo iria trabalhar junto em um mesmo local nos EUA. Lá, ela e sua amiga Paola Carvalho foram levadas para a cidade de Naples, a 40 minutos de Miami. As duas trabalharam em uma loja chamada Alvim, cujo proprietário chama-se Yosban. Duas semanas depois, foram levadas para a fábrica Sun Art, de Aras Khurshudyan, em Hollywood. No chão do quarto do apartamento onde elas foram morar, apenas dois colchões de ar. E muita barata. “Os colchões esvaziavam e acordávamos no chão frio”, diz Paola. As duas trancaram a porta do quarto para dormir, pois descobriram que teriam de dividir o apartamento de dois quartos com Aras, o motorista George e o auxiliar Eddy. “Era horrível, não sabíamos quem estava dormindo ao nosso lado”, lembra Nathália.

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As jovens tiveram de comprar talheres, pratos e panelas. Nos galpões da fábrica trabalhavam com colombianos, mexicanos, peruanos e outros brasileiros, muitos ilegalmente nos EUA. Produziam e embalavam estampas de camisetas. Ninguém falava inglês. Comiam na calçada, em rápidos intervalos. Trabalhavam das 9 horas às 22 horas e tinham direito a 30 minutos de almoço. Não sobrava tempo para estudar. Pelas duas primeiras semanas de trabalho, Nathália recebeu US$ 230. Paola recebeu US$ 165. O dinheiro não deu para pagar o que elas gastaram com alimentação e venenos para matar as baratas do quarto. Mais duas semanas de trabalho e resolveram voltar, depois de conseguir contato com as famílias no Brasil. Paola ainda teve de devolver US$ 21 ao empregador, como restituição pelo uso do alojamento. Resultado de um mês de trabalho: US$ 143. Aras tem o hábito de beber e gosta de ficar “cantando as garotas”, como diz Nathália. Desesperada com as notícias que recebeu da filha, a mãe de Nathália, Maria de Fátima, foi pessoalmente aos EUA para trazer a garota de volta. “A perda da ilusão destes jovens é maior do que a perda monetária”, lamenta Maria de Fátima.

Nathália e seus amigos foram vítimas de um tipo de intercâmbio que requer cuidados especiais: o Work and Travel, ou Trabalhe e Viaje. A modalidade ganhou prestígio internacional após os ataques terroristas de 2001, quando os Estados Unidos – destino preferido por 48% dos brasileiros – adotaram a política de endurecer contra os clandestinos e ao mesmo tempo ampliar o número de vistos para absorver trabalho temporário. Nesse contexto, diversos jovens são vítimas de uma quadrilha que atua basicamente na Flórida, promovendo o intercâmbio escravo. Os estudantes são impedidos de falar inglês e ganham pouco mais de 10% do salário de um trabalhador clandestino. Os donos das empresas providenciam moradia, mas cobram tarifas de luz e aluguéis extorsivos. No final do mês, a exemplo do que aconteceu com Paola, muitos ficam devendo dinheiro aos empregadores. O esquema envolve empresas de sete cidades da Flórida, segundo os relatos dos jovens, e explora centenas de pessoas.

Joédson Alves

DESILUSÃO Paola foi para os Estados Unidos para aperfeiçoar
o inglês e para conviver com outra cultura, mas acabou
um galpão com imigrantes ilegais, submetida a 11 horas
de trabalho diário e ainda teve que pagar para poder
deixar o “emprego” e voltar para o Brasil

Diego Critter Melhado, 20 anos, de Campinas, no interior paulista, chegou a Miami no dia 18 de dezembro, trabalhou dois dias e no terceiro desistiu do emprego. Ele trabalhava numa fábrica lavando com as próprias mãos as telas de alumínio utilizadas em serigrafia, sujas de tinta. Diego tinha de misturar produtos químicos e não recebeu máscaras nem luvas. “Tive vários pequenos cortes nas mãos e aquilo ardia muito nos olhos”, lembra. Ele morava com três amigos, todos submetidos a trabalho escravo. No apartamento de um quarto só havia quatro colchões de ar, dois deles furados. “Tivemos de pagar adiantado US$ 2,6 mil de aluguel para sermos liberados pelo empregador”, diz o rapaz. “É trabalho escravo.” Os rapazes de Campinas fecharam contrato com a empresa brasileira Experimento Intercâmbio Cultural. “A Experimento não nos ajudou em nenhum momento”, reclama. Eles procuraram o consulado brasileiro em Miami, que os encaminhou para o advogado Joel Stewart. Mas o advogado disse aos jovens que os contratos de emprego estavam irregulares e que nada podia fazer. Quando os estudantes falavam em procurar o consulado, os empregadores ameaçavam e diziam que tinham o controle sobre o visto. A gerente da Experimento, Patrícia Zocchio, lamentou o tratamento que os estudantes receberam no Exterior. Ela afirma que a empresa realizou todos os esforços para “recolocar” os jovens em outro trabalho. A mãe de Diego, Márcia Melhado, quer a devolução de tudo o que gastou. “Eles extorquiram o dinheiro dos meninos”, reclama Márcia.

A promessa feita pela maioria das 70 empresas que enviam estudantes para o Exterior é de um emprego digno ao longo de uma temporada de até quatro meses. Cada jovem gasta entre R$ 10 mil e R$ 12 mil com passagens, taxa de agência e outras despesas. As empresas de intercâmbio costumam cobrar R$ 3 mil de cada jovem, só de taxas. Mas nada assegura que por trás de uma fachada bem montada não haja uma arapuca. O estudante André Lima, que trabalhou um mês em Miami, diz ter conhecido vários outros brasileiros vivendo em condições subumanas. Além de Naples e Hollywood, ele diz que o esquema tem lojas em Cocoa Beach, Anna Maria Island, Clearwater e Fort Lauderdale. Uma das agências nos EUA que providenciaram os falsos empregos para os brasileiros é a Aspire Wordwide. “Esperávamos uma resposta melhor da Aspire”, lamenta Natália Payne, responsável pela Bex, agência brasileira que mandou seis jovens de Brasília para as mãos do esquema. Ela admite que os jovens pagaram taxas extorsivas. Cada um tinha que entregar US$ 71 para pagar energia elétrica na residência coletiva. Um mesmo apartamento de dois quartos acomodava até dez pessoas. Mesmo em residências coletivas, esses jovens pagaram US$ 422 de aluguel e caução. Bex e Aspire romperam o convênio assim que ISTOÉ começou a investigar o intercâmbio escravo, há três semanas.

Hélcio Nagamine

MÃOS CORTADAS Rogério, Maurício, Guilherme e Diego (da esq. para a dir.) deixaram Campinas para estudar na Flórida.
Acabaram trabalhando com produtos químicos sem proteção e saíram com ferimentos. E por um apartamento
de um dormitório e sem mobília, eles tiveram que pagar um aluguel de US$ 2,6 mil para se verem livres da quadrilha

“Não tenho o que comentar”, disse Sara Molan, a responsável pela Aspire em Laguna Beach, na Califórnia. Aras Khurshudyan, um dos empregadores identificados, também se recusou a atender a reportagem. “É lamentável que isso ocorra, mas o governo dos Estados Unidos vistoria essas agências e empresas que cuidam de intercâmbio e com certeza tomará providências”, diz Tatiana Visnevski, presidente da Brazilian Educational & Language Travel Association – entidade que congrega 70 empresas brasileiras de intercâmbio. Os pais que tiveram os filhos humilhados, no entanto, não estão dispostos a esperar que o governo americano tome providências e já planejam a adoção de uma série de processos tanto aqui como lá. A advogada Maria Bilotta, tia de Flávia Escobar, outra vítima do esquema, afirmou que os processos no Brasil serão apresentados com base no Código de Defesa do Consumidor. “As agências não cumpriram contratos e fizeram propaganda enganosa”, constata. Aos 22 anos, Flávia chegou este mês dos EUA e se diz traumatizada. “A gente não podia conversar em inglês, não podia sentar, a gente tinha que estar sempre trabalhando.” A estudante Elisa Carvalho, 21 anos, ficou irritada ao saber que ganharia US$ 6 na segunda quinzena de trabalho. “Infelizmente, tem muita gente lá que aceita essas condições por falta de opção melhor no Brasil”, diz Elisa

Fotos: Joédson Alves

O MAPA DO CRIME André Lima trabalhou um mês em Miami.
Ele diz que, além de Naples e Hollywood, o esquema do
intercâmbio escravo tem lojas e fábricas em Cocoa Beach,
Anna Maria Island, Clearwater e Fort Lauderdale


Joel Stewart, advogado do consulado brasileiro em Miami diz que de fato alguns jovens brasileiros têm feito reclamações sobre as condições a que ficam submetidos, mas assegura que o problema está mais no Brasil do que nos Estados Unidos. “Esses programas não concretizam em contrato todos os detalhes necessários. A culpa é das agências brasileiras, que contratam essas pessoas e nada explicam. É uma bagunça”, acusa o advogado. Ele sugere que antes de viajar os jovens coloquem no contrato todos os detalhes do programa, como salário, condições de moradia e tipo de emprego. No Brasil, o Itamaraty pediu às famílias que apresentem denúncia formal na Divisão de Assistência Consular, em Brasília, pois assim o governo poderá promover uma ação coordenada com o governo dos Estados Unidos para coibir qualquer tipo de exploração de mão-de-obra semi-escrava de brasileiros. “Essas empresas têm que ser identificadas para que respondam juridicamente”, diz o secretário Acir Pimenta. “O Itamaraty vai instruir os postos no Exterior a fazer representações para evitar que os jovens sejam enganados”, promete.

Hélcio Nagamine

O SONHO E O PESADELO Nathália passou mais de
três anos planejando o intercâmbio com os Estados Unidos
e quando chegou a Miami começou a viver um pesadelo,
inclusive sendo obrigada a dividir o apartamento com homens
que nunca tinha visto

Com a rápida expansão do mercado de intercâmbio, as agências no Brasil oferecem dez tipos de programas no Exterior. O trabalho remunerado é o que tem mais crescido nos últimos cinco anos. O programa é para jovens entre 18 e 30 anos, que tenham bom nível de inglês. Até então, um dos mais procurados era o Programa High School, pelo qual os estudantes entre 14 e 19 anos podem ficar até 12 meses na casa de uma família americana, para terminar o segundo grau. Mas, nesses casos, as famílias podem e devem ser bem escolhidas.


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