Num país como o Brasil, onde as carências sociais se proliferam, não faltam vozes em defesa da adoção internacional como a solução mais eficaz para uma infância sem perspectivas. Comparar a vida de um jovem em uma favela à vida de um adolescente num país do Primeiro Mundo é até covardia. O problema é que nem sempre as adoções internacionais terminam com o sonhado final feliz. Em maio do ano passado, descobriu-se que meninas brasileiras adotadas por um respeitável casal francês acabaram vítimas de violência sexual doméstica. Poderia ter sido apenas um caso isolado. Não é. Nos Estados Unidos, crianças brasileiras que foram adotadas com a certeza de que estariam em melhores condições passam por dramas talvez até mais carregados do que os vividos aqui. ISTOÉ teve acesso a três desses casos. Djavan Soares da Silva, 22 anos, foi adotado em 1988. Hoje, ele está confinado em uma prisão americana, na região de Boston, condenado por furto e envolvimento com drogas. Quando sair da cadeia, terá que voltar para um país com o qual não guarda a menor identidade (leia a história de Djavan abaixo). Embora vivendo nos EUA como um americano, Djavan não tem o direito de, ao final de sua pena, voltar para casa e desfrutar da liberdade, como qualquer cidadão comum.

Os Estados Unidos ainda são um dos poucos países que não ratificaram a Convenção Internacional de Adoção de Haia, de 1993, segundo a qual uma criança adotada adquire automaticamente a cidadania do país para o qual foi levada. Nos EUA, essa criança, mesmo já tendo um nome americano, torna-se apenas um residente permanente, um imigrante legal. Só vira americano se a família encaminhar pedido especial nesse sentido e for atendida. O problema é que nem sempre a solicitação é feita. Para complicar ainda mais, a nova lei de imigração americana, de 1997, diz que todo estrangeiro que comete um crime, após o cumprimento de sua pena, deve ser mandado de volta ao país de origem. Assim, todas as crianças brasileiras adotadas por americanos que não obtiveram a cidadania correm o risco de ser devolvidas ao País. Djavan não é o único caso. ISTOÉ teve conhecimento de pelo menos outros três. Sob acusação de praticar abuso sexual, o jovem Reginaldo da Silva foi colocado dentro de um avião e despachado de Michigan para o Recife, em agosto do ano passado. Pelo mesmo motivo, J.C.O. foi devolvido de Oregon, também nos Estados Unidos, e vive agora numa entidade assistencial no interior paulista. Traumatizado, o rapaz passa por um tratamento psicológico e psiquiátrico. Um novo caso também teria sido descoberto recentemente em Ohio, mas as autoridades brasileiras não o confirmaram oficialmente.

A legislação americana abre uma brecha para que crianças do Brasil e também de outros países passem a ser tratadas como mercadoria. São bonitas, lindas e maravilhosas, ao primeiro encontro com os pais adotivos. Se criarem problemas – ou "apresentarem defeitos" –, podem ser colocadas em disponibilidade. Ao serem deportadas – ou simplesmente devolvidas –, tornam-se apátridas. "Essas crianças estão num limbo jurídico. Não podem ser consideradas brasileiras nem receberam a cidadania americana", explica o juiz Luiz Carlos de Figueiredo, da 2ª Vara da Infância e da Juventude do Recife. Se a moda pegar, casais americanos podem querer devolver crianças que têm doenças incuráveis e que dêem muitas despesas por causa de problemas de saúde. Essa situação já tem levado juízes, promotores e procuradores de Justiça do Recife, de Porto Alegre e São Paulo a se manifestarem contra a adoção de crianças por americanos. "Ou os Estados Unidos ratificam a Convenção de Haia sobre adoção ou será danoso ao País a permissão para que americanos adotem crianças brasileiras", alerta o juiz Figueiredo. "Se continuarem a ocorrer esses problemas, vamos iniciar uma campanha para evitar as adoções pelos americanos", ameaça o promotor Maurício Ribeiro Lopes, do Ministério Público de São Paulo.

 

Negligência "Não existe adoção sem que a pessoa aceite assumir como filho um estranho", argumenta o procurador de Justiça Paulo Afonso Garrido de Paula, membro do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo. "Os pais adotivos devem conhecer o histórico da criança, e se isso não ocorrer é porque há negligência, inclusive por parte dos adotantes. Agora, se a adoção não der certo, não pode devolver." Ele lembra que ninguém pode garantir o futuro de nenhuma criança, mesmo de um filho natural. "Na adoção, os riscos são maiores. Não se pode desprezar o histórico de uma criança já com quatro ou cinco anos. Ela traz consigo os hábitos alimentares, higiênicos e, às vezes, a visão de mundo violenta. O adotante tem de estar preparado para ser pai. E a criança não pode ser tratada como cidadã de segunda classe, como está ocorrendo nos Estados Unidos."

O pragmatismo americano tem atingido jovens que já haviam passado pela amarga experiência do abandono em suas famílias de origem no Brasil. O pernambucano Reginaldo da Silva, por exemplo – adotado no Recife em outubro de 1989, quando tinha 12 anos –, era um garoto rebelde, que não se conformava de ter sido abandonado pela mãe. Ele foi adotado e levado para Michigan junto com outros quatro irmãos menores, com idades entre seis e 11 anos. Foi o único a ser mandado de volta. O paulista, J.C.O, hoje com 19 anos – adotado também junto com outras duas irmãs por uma família de Oregon, em 5 de novembro de 1993 –, era vítima de violência e de abuso sexual dentro de sua própria casa, em Barueri, na Grande São Paulo. Acabou rejeitado pelos pais adotivos três anos depois de embarcar para os EUA. Antes de retornar ao Brasil, também teve várias passagens pelos centros de delinquentes juvenis.

O caso que mais chocou as autoridades brasileiras, porém, foi o de Reginaldo. Ele desembarcou no aeroporto dos Guararapes, no Recife, sem nenhum aviso. Não sabia falar português e não tinha a mínima idéia para onde ir. Ficou dormindo três dias nas poltronas do saguão do aeroporto. Atendido por assistentes sociais da Vara da Infância do Recife, foi encaminhado a um abrigo no Conselho Tutelar da cidade. Mas, no caminho, desapareceu e ninguém sabe onde ele se encontra hoje. "Nesse caso, cabe no mínimo uma ação de reparação de danos. O governo americano era obrigado a sustentar esse jovem", observa o juiz Figueiredo.

A família americana de Reginaldo não o quis mais nos Estados Unidos. A mesma coisa aconteceu com J.C.O. O rapaz hoje sofre de crise de identidade e os psicólogos que o acompanham dizem que ele tem dificuldades para falar sobre sua frustrada experiência nos Estados Unidos. Ele assumiu um nome americano quando foi adotado e hoje usa um terceiro, completamente diferente. "Ele não consegue mais estudar, é apático e não tem interesse em aprender uma profissão", comenta a diretora da instituição na qual está abrigado. Ela pediu para manter o nome do rapaz e o da entidade em sigilo para preservar a imagem de J. Ele ficou apenas dois anos e dez meses nos EUA. Sua mãe americana, Diane, não mantinha bom relacionamento com ele. "Ela usava termos depreciativos comigo e meus irmãos. Também impunha castigos exagerados a nós", contou o rapaz ao promotor paulista Maurício Lopes, assim que retornou ao País.

 

Rejeição A convivência de J. com a primeira família adotiva durou somente cinco meses. Ele foi morar com outra, mas as dificuldades continuaram. O rapaz reclamava porque era impedido de manter contato com suas duas irmãs, mesmo por telefone. "Meu pai adotivo sempre desligava o aparelho." Não tinha nenhum acompanhamento psicológico, segundo afirmou. Assim, acabou rejeitado mais uma vez. Passou então a trabalhar na sede da Holt – organização americana que encaminhou o seu processo de adoção nos EUA. Cumpria uma jornada de dez horas, embora o serviço não fosse obrigatório. Ficou só um mês nesse trabalho. Depois, passou por três centros de delinquentes juvenis. A Betel, entidade que fazia a intermediação de adoções para os EUA e representava a Holt no Brasil, passou então a pedir o seu retorno. Segundo o pastor Naor Alves de Lima, presidente da Betel, a adoção não deu certo porque o rapaz "insistia em fazer provocações e desobedecia aos pais adotivos".

Para o Ministério Público de São Paulo, a Holt e a Betel não teriam dado assistência adequada ao garoto. O procurador Garrido de Paula também acha que ele pode pleitear uma ação de reparação de danos, inclusive morais. "A conduta omissa dos adotantes certamente provocou prejuízos e vexame ao jovem", afirmou em um parecer, à época. "A irresponsabilidade de quem adotou e das autoridades estrangeiras xenófobas, que trataram o adolescente como se fosse objeto de uma transação mercantil, deve (devia) encontrar resposta na pátria acolhedora." O promotor Maurício Lopes chegou a pedir punição à Betel: queria a cassação da licença para que a entidade continuasse intermediando adoções internacionais. O Judiciário não aceitou o pedido, mas esse trabalho foi interrompido tempos depois. A Holt, afinal, achou mais fácil e "menos burocrático" adotar crianças da China e da Indonésia.

 

De Djavan a D.J.

A vida do brasileiro Djavan Soares da Silva tem uma única coerência: a perda da família. Não importa em que parte do mundo ele esteja, sempre acontecerá de perder o núcleo familiar que por uma ou outra razão se aglutinou em torno deste rapaz de apenas 22 anos. Quando era bebê, em São Paulo, não conheceu o pai. A mãe não tinha condições de criá-lo sozinha, e o menino acabou num orfanato público. Este poderia ter sido o fim de qualquer laço de parentesco da criança, já que raros são os que têm a sorte de uma adoção. Principalmente os mais grandinhos. Mas Djavan ganhou na loteria: aos dez anos de idade foi adotado por uma família americana.

A família Arams, da região de Boston, esperava que Djavan se transformasse no filho de seus sonhos. Mas isso não aconteceria. Durante os conturbados anos da adolescência de Djavan, os incidentes foram se multiplicando na mesma proporção geométrica em que se tornavam mais graves. O descontrole emocional do garoto era muito mais problemático do que a afetação natural de um adolescente. Logo mais suas explosões de raiva ganharam qualidades violentas. O pior é que os pequenos furtos de dinheiro em casa acabaram transbordando para a rua. Em breve Djavan estava dando trabalho à polícia. E este seria o estopim para fragmentar sua família americana. O que eles não sabiam era que o brasileiro nascera com sérios desequilíbrios mentais.

Os pais adotivos de Djavan, segundo depoimentos prestados em corte, nunca trataram de sua naturalização. Ou seja: o rapaz não era cidadão americano, e continua sendo tão-somente brasileiro. Até 1994 isto não seria problema, mas, com a passagem da nova lei de programas sociais – promovida por congressistas conservadores –, os estrangeiros com visto de residência nos Estados Unidos podem perder este privilégio ao cometer algum crime, mesmo que não tenha passado por tribunais ou prisão. E Djavan Soares da Silva, autor de múltiplos furtos e com problemas com drogas, passou pela frente de vários juízes, até que um deles o mandou para a cadeia aos 18 anos para cumprir uma pena de quatro por roubo. Ao terminar esta sentença neste ano de 1999, o prisioneiro – que os colegas encarcerados, sua mais recente família, chamam de D.J. (num trocadilho entre seu nome e a designação americana para os discotecários) – provavelmente será expulso do país, deportado para o Brasil. O núcleo que formou na cadeia é mais um que ele verá desfeito.

O Ministério das Relações Exteriores, através da embaixada em Washington e do Consulado do Brasil em Boston, conforme a praxe, está dando assistência jurídica ao brasileiro. Sua advogada é a americana Laurinda Hicks, que tem tradição de trabalho para brasileiros. Tanto a advogada quanto os diplomatas têm mantido o caso sob sigilo, numa tática de silêncio. Considera-se – incompreensivelmente – que entrevistas e depoimentos à imprensa brasileira podem prejudicar o caso. ISTOÉ foi ao Department of Correction (órgão administrativo dos presídios) na prisão estadual de Walpole, e nos arquivos deste departamento na cidadezinha de Wilford, no Estado de Massachusetts, e levantou os dados sobre o prisioneiro Djavan Soares da Silva. As informações são públicas.

No rastro do caminho que muito provavelmente levará Djavan de volta a um país com o qual ele não tem nenhuma familiaridade, estão os cacos de sua família americana espatifada. Ele, que quase desaprendeu o português, irá para uma cidade estranha – São Paulo –, onde não conhece ninguém. Seus pais americanos, depois de tantos problemas com o filho que importaram de longe, acabaram se divorciando. O pai não quer mais nenhum contato com a pessoa que ele considera ser a desgraça de sua vida. Mas a mãe ainda deseja manter Djavan nos Estados Unidos e, segundo informa uma fonte contatada por ISTOÉ, está esperançosa na vitória no caso da deportação. Djavan, ao que parece, com todos seus problemas, finalmente ganhou mãe para o resto de sua vida.

Osmar Freitas Jr. – Boston (EUA)