EM NOME DE DEUS
Aos 13 anos, "a pastorinha" Ana Carolina prega em presídio e em grandes templo

A expressão é comum a quem está diante de um talento em ação: os olhos arregalam, quase não piscam, e o queixo vai caindo levemente, enquanto a boca se abre. O espanto e a incredulidade são ainda maiores quando é uma criança ou um adolescente o autor da façanha. O paulista Victor Bigai toca violino como gente grande e é um talento reconhecido desde que, aos nove anos, estreou como solista na Sala São Paulo à frente de uma orquestra de 130 músicos. Sua mãe, a professora de artes Lilian Bigai, conta que a família descobriu o dom do filho após presenciar inúmeras vezes a surpresa estampada na expressão de quem o via tirar sons do violino. Victor hoje tem 15 anos e há dois é bolsista da Academia de Música da Orquestra Sinfônica de São Paulo, da qual recebe R$ 1 mil por mês. "Percebi que ele tinha um talento pela reação das pessoas", diz a mãe. "Os professores dele também dizem que ele toca violino com maturidade, como se fosse um músico de 20 e poucos anos."

O violinista é dono de um talento incomum para a música, muito além do esperado para a sua idade. Como ele, há milhões de jovens no planeta com habilidades excepcionais para várias áreas, como comunicação, artes ou matemática. Os talentosos e os superdotados costumam manifestar algumas características, como QI superior ao normal, vocabulário avançado, forte senso de liderança, pensamento crítico e intensa concentração e por isso se destacam de seus pares. No esporte, também há prodígios. Em Pequim, o mundo poderá conferir a performance nos saltos ornamentais do inglês Tom Daley, 13 anos, o mais jovem atleta desta Olimpíada, que começou a nadar com apenas três anos.

No Rio, a evangélica Ana Carolina Dias, 13 anos, é tida como um talento verbal que tem no currículo apresentações em grandes templos, em programas de televisão, no Exterior e quatro CDs gravados. Conhecida como "a pastorinha", a carioca prega desde os quatro anos. Tudo começou quando ela foi acompanhar o pai, o pastor Ezequiel, da Assembléia de Deus, a uma rádio. Lá, ele divulgaria uma vigília de seu templo, mas o radialista sugeriu que sua filha fizesse a propaganda. "Em vez de divulgar o evento, ela começou a pregar. Abriu a Bíblia e falava mesmo sem ter ido à escola", conta o pai. Bastou para os telefones da rádio não pararem de tocar. E Ana Carolina descobrir sua vocação.

ARQUIVO PESSOAL

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DOM MUSICAL
Victor começou a tocar violino aos seis anos: hoje, ganha R$ 1 mil da Osesp

Depois de ganhar notoriedade com um vídeo no YouTube, no qual aparece pregando para uma multidão em um templo, a pastorinha entra em presídios e delegacias para "falar às almas", mantém o serviço S.O.S. Espiritual, um telefone pelo qual dá conselhos e faz pregações e, às sextasfeiras, sobe uma montanha do bairro onde mora, no Rio, para orar. O pai dela ressalta que a agenda não a prejudica na escola: "É a primeira da sala, com a misericórdia de Deus."

No colégio, o violinista Victor – que toca desde os seis anos depois de, em um sonho, uma voz insistir para que ele dedicasse a vida ao violino – também se destaca. É comum ele terminar as tarefas com rapidez e ficar procurando o que fazer. Adolescente com aparência pueril e vocabulário de adulto, ele se acostumou a ter o nome trocado por substantivos como talentoso precoce, gênio e superdotado. Há sutis diferenças entre eles (leia quadro). Em comum, porém, alguns adjetivos. "Sei que alguns colegas do colégio me acham esquisito por conversar como adulto e levar a sério tudo o que faço", conta Victor, que passava noites em claro assistindo a desenhos orquestrados, como Tom & Jerry.

DIVULGAÇÃO/SBT

ESTRELA DA TEVÊ
Maisa queria ser artista desde os dois anos. Hoje, aos cinco, comanda um programa ao vivo

Ter habilidades excepcionais e se distinguir dos outros não faz a criança ser necessariamente estranha, indisciplinada ou ter problemas de relacionamento, como se imagina. É o que mostra um estudo que deu origem a uma tese de doutorado feito no laboratório de avaliação das diferenças individuais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em 2006, 600 crianças entre nove e dez anos, que freqüentavam escolas públicas, passaram por um teste de inteligência. Em seguida, os pais de 140 delas preencheram um questionário sobre as atividades gerais dos filhos em casa e o estado emocional deles. Não se encontrou diferenças entre crianças de diversos níveis de QI com relação à sociabilização, às atividades físicas e à prontidão para realizar tarefas, conforme o relato dos pais, que desconheciam o QI dos filhos.

Outro ponto: as crianças de diferentes níveis de QI eram semelhantes entre si em relação aos estados emocionais de alegria, tristeza, irritação e desinteresse. Orientadora do estudo e coordenadora do laboratório da UFMG, a psicóloga Carmen Flores- Mendoza conclui: "As crianças de QI mais elevado mostravam naturalmente maior preferência por atividades intelectuais e não se diferenciavam emocionalmente das demais. É um mito, portanto, achar que crianças superdotadas são também perturbadas." Para Carmen, um ou outro jovem talentoso pode apresentar problema de comportamento, se o ambiente não respeitar sua facilidade cognitiva.

A ponderação da especialista serve como um alerta para os pais do garoto João Vitor Portelinha de Oliveira, que deixou a opinião pública de queixo caído recentemente ao passar, aos oito anos, no vestibular de direito da Universidade Paulista (Unip). O menino foi impedido de cursar faculdade e segue no 5º ano do ensino fundamental. Seus pais, no entanto, decidiram buscar apoio psicológico para lidar com a precocidade do filho. O desafio, segundo eles, é explicar a João Vitor como seria absurda a diplomação de um advogado de 12 anos. "Se eu batalhar, acho que consigo entrar", ainda acredita o garoto. "Não queremos que a frustração acabe sendo um desestímulo à perseverança que ele sempre teve", diz a mãe, a arquiteta Maristela.

Desde que formulou suas primeiras frases, ainda bebê, João Vitor impressionava pela fluência, desinibição e curiosidade. Na escola, as notas boas e a facilidade para selecionar e se aprofundar em áreas de seu interesse – ciências, história e português – reforçaram a imagem de garoto inteligente. Na tentativa de "conquistar seu pequeno espaço", como define a mãe, o garoto decidiu ser juiz. Sem ajuda, inscreveu- se para o vestibular de direito no site da Unip, em Goiânia, onde nasceu e vive. No colégio onde estuda, como termina os exercícios com rapidez, é repreendido em sala de aula pelo professor por conversar demais. "Ele é totalmente normal. Nossa preocupação é a de que ele siga o caminho do bem, faça boas amizades, não use a inteligência para coisas erradas", diz Maristela.

De acordo com a psicanalista Ana Maria Iencarelli, especialista em criança e adolescente, o talento incomum na pouca idade constitui "um perigoso desvio do desenvolvimento normal por levar a criança a fazer algo inadequado para a infância". Ana Maria compara o caso de João Vitor ao do trabalhador infantil de uma carvoaria, ao da atriz mirim que chora na novela e ao da criança que dá show ao piano. "São formas de inclusão na vida adulta que vão custar caro. A energia psíquica é uma só e vai ficar concentrada, assim como os hiperativos gastam toda a energia na coordenação motora e não se concentram", compara.

FENG LI/GETTY IMAGES


SALTO ORNAMENTAL
Tom Daley (à frente do Cubo D’água, em Pequim): Olímpiada aos 13 anos

Expoente de maior visibilidade na atualidade dessa classe de jovens talentos, a apresentadora Maisa Silva, do Sábado animado, no SBT, dizia desde os dois anos que iria virar artista. Um ano depois, dublava cantoras numa espécie de show de calouros mirins no programa do apresentador Raul Gil. No ano passado, caiu nas graças de Silvio Santos e, hoje, vai ao ar ao vivo e aumenta o ibope do SBT. Nos corredores da emissora, Maisa é paparicada e tida como uma criança adulta. Para a psicóloga Carmen, da UFMG, nada indica que o talento prejudique a criança. O problema, segundo ela, não está no talento, mas no contexto social e educacional despreparado para receber e estimular crianças talentosas.

A atriz Narjara Turetta viveu história semelhante à de Maisa. Aos quatro anos, ela esbanjava talento diante das câmeras em comerciais e à frente de um programa na Record. Aos 12, encantou o País no seriado Malu mulher, da Rede Globo. Mas levou um tombo forte da vida. Hoje, aos 40, Narjara vende água-de- coco numa esquina de Copacabana. A psicanalista Ana Maria explica que os pais tendem a não reagir à precocidade dos filhos porque o talento encanta os adultos. Isso, segundo ela, encarcera a criança em um papel social, iludindo- a de que se destacará para sempre da multidão. "Ela não segue o processo normal de criação e estruturação da personalidade, elimina possibilidades, não aprende a suportar a dor, o desprezo, a tentativa fracassada. Na vida adulta, não será mais precoce e, aí, não saberá o que fazer", alerta.

Nos Estados Unidos, porém, onde 6% da população acadêmica (cerca de três milhões de jovens) são considerados superdotados, há políticas públicas para o desenvolvimento desses talentos excepcionais. Em 15 dos 50 Estados, há academias para estudantes avançados dentro dos campi das universidades. Na Universidade de Washington, que há muito tempo aceita estudantes que não cursaram o ensino médio, um estudo mostrou que acompanhar e capacitar o jovem talentoso o ajuda a se realizar na fase adulta. Foram pesquisados 95 ex-alunos que entraram na instituição entre 12 e 14 anos e, hoje, têm entre 16 e 40 anos. Publicado no ano passado, o estudo apontou que 70% disseram que suas expectativas financeira, intelectual e de amizade se confirmaram, 78% relataram o mesmo para o item família e 63%, para romance.

FENG ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ

SALTO ORNAMENTAL
João Vitor: tratamento psicológico após passar, aos oito anos, no vestibular

Na Vanderbilt University, pesquisadores estarão acompanhando por 50 anos cerca de 50 mil pessoas que, aos 13 anos, tiveram notas altas nos SAT, o teste americano classificatório para as universidades. Em uma prévia com 2.409 adultos, no ano passado, os pesquisadores levantaram que, da época em que fizeram o SAT até os dias de hoje, esses talentos publicaram 93 livros e registraram 817 patentes. "Foi identificado um potencial criativo extraordinário", conclui a pesquisa.

No Brasil, o Ministério da Educação colhe tímidos resultados com o núcleo de atividades de altas habilidades/ superdotação (Naah/s), criado em 2006 em parceria com a Unesco. Com apenas 27 centros espalhados pelo País, o objetivo é prestar atendimento a alunos superdotados e suas famílias, além de treinar professores para a tarefa. "Temos 2.170 jovens sendo atendidos, entre alunos do ensino fundamental e médio e da educação infantil", conta Renata Maia-Pinto, responsável pela implantação do projeto. "Eles já expuseram telas em vernissages, publicaram livros e desenvolveram projetos de robótica."

É sabido que o país que não cuida do capital humano promove a fuga de cérebros. Talentosos e superdotados, dizem os especialistas, têm como característica a busca por desafios. Se não encontram isso aqui, vão procurar lá fora. De acordo com Carmen, da UFMG, possuir uma superdotação, em 80% dos casos, é garantia de sucesso na vida adulta. Já o êxito do talentoso dependerá da área para a qual possui o talento, uma vez que os contextos sociais apreciam diferentes habilidades. É importante ressaltar, porém, que ninguém cria talentos ou superdotados: "É genética a explicação para o surgimento de habilidades extremas em crianças. Podese, apenas, facilitar ou reforçar a expressão dessas habilidades."

 


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