Ele foi a própria encarnação do herói romântico. George Mallory, poeta e professor na tradicional Universidade britânica de Cambridge no início do século, era uma figura muito atraente. Apaixonava homens e mulheres por sua inteligência, beleza e espírito aventureiro. Chegou a posar nu para o famoso pintor Duncan Grant. No amanhecer de 8 de junho de 1924, ele e seu amigo Andrew Irvine iniciaram a escalada final para atingir pela primeira vez o pico mais alto do mundo, o Everest (8.848 metros). O último sinal de vida dos dois alpinistas foi a visão de suas silhuetas desaparecendo sob a neblina que cobriu o topo da montanha às 12h50 daquele dia. Mallory tinha 38 anos. Irvine, 22, era um engenheiro recém-formado. Passados 75 anos, no sábado 1º uma equipe de alpinistas liderados pelo experiente americano Eric Simonson finalmente encontrou o corpo de Mallory, fincado no gelo a 274 metros do pico da que é considerada a mãe de todas as montanhas. Graças ao frio extremo e ao ar seco, a identificação do famoso alpinista foi imediata. Seu corpo, sentado sobre uma plataforma de gelo, estava incrivelmente preservado, principalmente da cintura para cima. O achado por si só já é um fato extraordinário. Mas ele também poderá resolver de uma vez por todas um grande mistério: será que Mallory e Irvine foram os primeiros a conquistar o pico do Everest, 29 anos antes do alpinista neozelandês Edmund Hillary?

A notícia do achado, divulgada no mesmo dia lá de cima via Internet, se espalhou rapidamente pela comunidade de aventureiros do planeta. "Ele parecia estar em paz consigo mesmo quando morreu", declarou David Anker, o primeiro a vê-lo na paisagem gelada. David Hahn, outro dos cinco alpinistas presentes, disse que mesmo esperando encontrar seus restos mortais, "foi um choque vê-lo sentado lá". As primeiras impressões colhidas no local não esclarecem se Mallory morreu a caminho do pico ou descendo dele. Ele ainda tinha uma corda amarrada em volta da cintura e rompida na ponta – indício de que seu colega Irvine, ainda não localizado, foi separado dele acidentalmente. Uma prova definitiva de que eles atingiram o topo seriam as fotos registradas por uma primitiva máquina portátil Kodak que eles carregavam. Especialistas garantem que o clima seco e frio da montanha preservaria integralmente os negativos. A câmera, porém, não estava com Mallory, como aliás já se supunha. A tarefa de documentar a escalada ficou a cargo de Irvine. Depois de vasculhar os bolsos de Mallory e gravar imagens para um canal americano de tevê educativa, a equipe de alpinistas fez uma pequena cerimônia fúnebre cobrindo o corpo do grande aventureiro com rochas, como haviam prometido aos descendentes de sua família na Inglaterra.

"Não queríamos perturbá-lo. Ele ficou lá por 75 anos. Mas ao mesmo tempo, cara, nós pensamos, que melhor tributo ao homem do que tentar saber se ele chegou ao topo", relata Hahn no site da expedição (www.everest.mountainzone.com). Os alpinistas tentarão responder a esta questão a partir deste final de semana depois de um merecido descanso de alguns dias no acampamento montado a algumas centenas de metros abaixo de onde Mallory foi achado.

Idolatrado A expedição liderada por Simonson foi organizada com o único propósito de achar Mallory. Dela participam até mesmo dois historiadores alpinistas. Desde o desaparecimento do cultuado aventureiro, várias tentativas foram feitas para localizar seus restos mortais e esclarecer a dúvida de sua façanha. Em 1933, um alpinista chinês encontrou a machadinha de gelo de Irvine (identificada por sua marca) fincada muito perto do local onde hoje se sabe que Mallory morreu. Em 1975, um chinês chegou a comunicar via rádio ter achado o corpo de um "inglês" próximo ao topo. Mas morreu na descida, antes de dar a localização. Ele engrossou a terrível estatística dos que já morreram desafiando o Everest: 150, até hoje. Então, por que gastar recursos e arriscar a vida de outros para achar o cadáver de apenas um homem? O culto a Mallory não se deve tão-somente ao fato de ter sido o primeiro a tentar atingir o topo do Everest. Membro da ala radical de intelectuais ligados a Cambridge, era idolatrado pelo bastante restrito Grupo Bloomsbury, que reuniu nos anos 20 figuras como a escritora Virginia Woolf, o filósofo Bertrand Russel e o revolucionário social Lytton Strachey. Paradoxalmente, Mallory era um homem de família; adorava sua mulher, Ruth – a quem enviava poemas românticos durante suas escaladas –, e seus três filhos. Seu ar tranquilo, meio zen, é sempre lembrado pela resposta que deu ao ser indagado por que pretendia subir uma montanha tão alta: "Porque ela está lá."

Os jovens alpinistas que finalmente encontraram seus restos mortais não ficaram espantados apenas com a conservação do cadáver. Suas vestimentas, muito de acordo com a casta tradição vitoriana da época, surpreenderam pelo despojamento. Para protegê-lo do frio ele se valia de nada mais do que um pulôver de lã, coberto por um paletó tweed. Usava também polainas e botas de couro. Sem contar as rústicas e muito pesadas garrafas de oxigênio da época. Para quem hoje ainda sofre com as baixíssimas temperaturas protegido por roupas confeccionadas com a mais moderna tecnologia térmica, se aventurar no Everest como se fosse a um piquenique é sinal de muita coragem.

Livro Desde a morte de Mallory, mais de 700 alpinistas atingiram o topo do Everest. Daí vem a pergunta: o que leva um homem ou uma mulher a caminhar lado a lado com a morte só para subir uma montanha? Coincidindo com a revelação do corpo de Mallory, a Companhia das Letras está lançando no Brasil um livro que se propõe a dar esta resposta. Ele foi escrito há quase dez anos por Jon Krakauer, jornalista-alpinista que fez sucesso no mundo inteiro há dois anos com o best-seller sobre o Everest No ar rarefeito. Em Sobre homens e montanhas, o autor procura derrubar a mística que cerca todos os alpinistas. Segundo ele, "são pessoas, simplesmente, em quem sobressai uma linhagem especialmente virulenta da condição humana". Bem, não é o que pensam os admiradores de Mallory. Em sua cidade natal, a quieta vila de Cheshire no interior da Inglaterra, ele é homenageado há 75 anos por um vitral na secular igreja local. Nas janelas de vidros coloridos sua imagem com o Everest ao fundo está ao lado do rei Arthur, São George e sir Galahad, símbolos britânicos da qualidade heróica que Mallory sempre se inspirou.

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