Os dias 13 e 14 de janeiro de 1999 estão desafiando o calendário. Deveriam ter durado apenas 48 horas, já ocuparam quatro meses do ano e parece que ainda vão adiante. Os negócios que ligam os personagens centrais daquelas quarta e quinta-feiras podem explicar por que o relógio parou. Um punhado deles encontra-se na Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F), responsável pelos maiores ganhos e perdas na desvalorização que fez R$ 10 bilhões trocarem de mão na economia brasileira. O risco de que uma crise se alastrasse por todo o sistema financeiro partia da Bolsa e se voltava contra ela. Se o Banco Marka quebrasse, novas falências transformariam a portentosa sede da BM&F num castelo de areia e afundariam seus planos de triplicar os negócios com derivativos, por meio de acordos operacionais no Exterior. Além disso, Salvatore Alberto Cacciola não era só testemunha de ligações perigosas entre o sistema financeiro e o governo. Também conhecia em detalhes as operações da Bolsa: regulares e irregulares. Sabia sobretudo das últimas, que agora movem os fiscais do Banco Central e da Receita Federal a apurar fraudes financeiras destinadas à lavagem de dinheiro e à sonegação de impostos. Nas últimas semanas, o ímpeto investigativo foi aguçado pela postura da BM&F, que vem se eximindo de responsabilidade na operação de socorro ao Marka. Nessa operação, o secretário da Receita, Everardo Maciel, decidiu mobilizar os melhores integrantes da equipe de inteligência que já acompanha o mercado financeiro em São Paulo.

"As garantias eram suficientes", repetiram à exaustão os dirigentes da Bolsa no depoimento que deram à CPI, na quinta-feira 6. Omitiram no discurso o que o superintendente-geral da BM&F, Edemir Pinto, só ousou escrever. O ofício 8/99, enviado aos senadores em abril, diz que, ao analisar o quadro de incertezas da economia brasileira, "a BM&F ficou extremamente preocupada com a possibilidade de crise sistêmica, em face da oscilação errática das principais variáveis que servem de referência aos contratos por ela administrados". Sem meias palavras, Edemir Pinto, que é responsável pela liquidação diária das operações na Bolsa, admitiu que seu sistema de controle de risco é incapaz de evitar uma quebradeira numa economia instável como a brasileira. E não foi a primeira vez que a BM&F quase foi à lona. "Na crise da Ásia, a coisa foi muito pior e o nosso risco foi sério", minimiza o superintendente Antônio Carlos Barbosa, o popular "Tatá". Se permitisse a quebra de alguns de seus sócios, a Bolsa daria um péssimo sinal aos dirigentes de outros mercados no Exterior. Há meses o presidente da BM&F, Manoel Félix Cintra Neto, vem trabalhando para fechar acordos operacionais com as Bolsas de Chicago, Paris e Cingapura, o que prometia multiplicar o mercado para as corretoras brasileiras. Seria a principal realização do mandato da atual diretoria, caso a decisão não dependesse também de um aval do presidente do BC, Armínio Fraga. Na autarquia, atualmente, só há gente contrariada com o comportamento dúbio da BM&F. E pior: em dúvida sobre a real competência de seu sistema de controle de risco.

A Bolsa também tinha outros motivos para evitar a quebra de Cacciola, um influente sócio neste clube. Suas boas relações com o superintendente de operações da Bolsa, Paulo Roberto Garbato, asseguraram uma carreira próspera à Zap Informática, onde Cacciola mantém uma participação indireta por meio de seu filho, Fabrizio. Em seu depoimento à CPI, Maria do Socorro Costa de Carvalho, ex-chefe da mesa de câmbio do BC, disse que fechou a venda dos contratos de socorro a um preço atípico com o próprio Garbato e que ele manifestou preocupação com as instituições vendidas no mercado de dólar futuro. Até agora, o único na BM&F a se preocupar com os perdedores, segundo a série de depoimentos dados ao Senado.

Também era interesse da Bolsa evitar a inadimplência do Marka para poupar o patrimônio da corretora Theca, responsável pela liquidação financeira dos negócios feitos pelo banco de Cacciola. Neste caso, livrou-se o dinheiro de Ney Castro Alves, vice-presidente da BM&F e amigo do banqueiro italiano. Uma amizade que já rendeu dividendos. Há dois anos, Alves ajudou a livrar Cacciola de uma multa imposta pelos fiscais do BC, que haviam flagrado uma retirada de recursos do Marka por meio do "caixa 2". A punição foi retirada pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro, no dia 24 de abril de 1997, num julgamento que contou com o voto, entre outros, do conselheiro Alves. Um ex-conselheiro, que participou daquela decisão, garante que Cacciola pode voltar a ser processado, desta vez por má técnica bancária e gestão temerária. Mas ele prefere não arriscar um palpite sobre a decisão do conselho, composto majoritariamente por representantes do mercado financeiro.

As razões que fizeram o relógio do País parar nos dias 13 e 14 de janeiro são tão variadas quanto os votos de silêncio que habitualmente as encobrem no mundo financeiro. E o mais polêmico deles já não pode mais ser revelado por seu guardião original. Dorival Rodrigues Alves, ex-superintendente-geral da BM&F, não participou dos contatos com o BC que determinaram o salvamento do Marka, mas emprestou sua assinatura ao documento que vem sendo utilizado como álibi de Francisco Lopes – e contra o qual pesam suspeitas muito mais graves do que um mero jogo de influências no mercado financeiro. Se não encobria um crime, porque a responsabilidade pela carta foi transferida ao convalescente Dorival, um homem que se debatia contra o câncer naquela tensa semana de janeiro e que foi vencido pela doença em abril passado? Cacciola, que depõe à CPI na quinta-feira 13, tem a resposta.

 

O filho virou testa-de-ferro

Nas ingênuas apostas do truco, quem tem um zap na mão tem a carta certa para ganhar qualquer jogo. No mundo do mercado financeiro, ao que parece, também. Há três anos, Salvatore Alberto Cacciola fechou um importante contrato com a Zap Informática, ágil empresa instalada no centro financeiro de São Paulo, nas cercanias da avenida Paulista. Formalmente, o negócio previa a cessão de um software incompleto, que o Marka começou a elaborar, mas não conseguiu concluir. Em troca, a empresa de informática empregaria em sua direção Fabrizio Cacciola, um jovem de 25 anos com pouca disposição para levar adiante seu curso de Administração de Empresas. Informalmente, porém, o acordo com Cacciola dava à Zap um trunfo que ela ainda não tinha: passe livre no mercado financeiro. "Hoje estamos presentes em 224 das 300 instituições financeiras do mercado", gaba-se João Torres, diretor da empresa cujo programa é responsável pela contabilidade virtual de milhares de complexas operações realizadas diariamente.

Mas para chegar lá, era preciso mais do que o talento dos técnicos em informática. Cacciola mantinha boas relações com Paulo Roberto Garbato, superintendente de operações da Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F). "Garbato é quem decide as compras de software na Bolsa", explica Torres, que só recebeu o sinal verde da BM&F para vender seu produto às corretoras depois do acordo com Cacciola. A Zap, hoje, integra um seleto clube das Software Houses, empresas autorizadas a fornecer um programa compatível com as necessidades de quem atua na BM&F. Além disso, há dois anos, a Zap comprou a Meca Teleinformática, do grupo Globo. Já Fabrizio casou há 30 dias e se afastou da Zap por tempo indeterminado. "Pedimos para ele não voltar até as coisas ficarem mais tranquilas", conta Torres. Enquanto isso, os demais sócios estão transformando as empresas ligadas à Zap na ZapCode. A nova firma terá o filho de Salvatore entre seus sócios e dará ao pai de Fabrizio uma sobrevida no mercado financeiro, mesmo depois que o Banco Central o impediu de operar com seu banco. "Fabrizio não tem perfil técnico, por isso o passamos para a área administrativa e estamos insistindo para que ele volte a estudar", explica João Torres. Já o pai poderá controlar as operações de grande parte das instituições financeiras e não se afastará do mercado, como prometeu no famoso bilhete em que pediu socorro a Francisco Lopes e no próprio acordo final com o BC.

Wladimir Gramacho

 

Bom e velho Morgan

 

O grupo Morgan, que amealhou R$ 1 bilhão comprando dólares às vésperas da desvalorização, é um velho parceiro do governo. Tão próximo que participou de uma operação secreta do BC para manipular a cotação dos títulos brasileiros no Exterior. Em 1995, o banco JP Morgan, um dos braços da corporação, foi encarregado de usar US$ 300 milhões das reservas cambiais para operar com títulos da dívida brasileira e provocar a elevação artificial do preço dos papéis. O negócio, proibido pelo acordo de renegociação da dívida externa que impede o País de recomprá-la, foi escondido do Tribunal de Contas da União. O Morgan seguiu cultivando este bom relacionamento. Em 1997, ofereceu dois seminários a funcionários do departamento de câmbio, então chefiado por Maria do Socorro Costa de Carvalho (foto). Um em Manaus e outro em Fortaleza, com despesas pagas. Um evento institucional corriqueiro, argumenta o BC. Na última semana, o deputado Aloísio Mercadante (PT-SP) denunciou uma nova parceira que rendeu ao grupo Morgan um lucro de quase US$ 100 milhões: entre outubro e março últimos, o Banespa, por indicação do BC, vendeu US$ 747 milhões em títulos da dívida ao Morgan Trust. Como o momento era ruim, o deságio foi alto e o Banespa recebeu apenas US$ 414 milhões pelos papéis.

Sônia Filgueiras