Não é milagre algum.” A frase é do médico legista e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Nelson Massini, sobre o excelente estado de conservação do corpo do papa João XXIII. Quase 40 anos depois de sua morte, descobriu-se que os restos do sumo-pontífice não se deterioraram. Ao ser aberto o caixão para a exumação do papa que chefiou a Igreja Católica de 1958 a 1963, era como se ali estivesse um homem que dorme em paz. Depois de terem retirado o tecido que cobria seu rosto, revelou-se uma expressão de calma, com os olhos cerrados e uma boca levemente aberta. “É como se ele tivesse dormido ontem. Parecia tranquilo. A serenidade que teve em vida, ele levou consigo na morte”, afirmou o arcebispo da Basílica de São Pedro, o cardeal Virgílio de Noé. João XXIII, conhecido como o papa bom, revolucionou a Igreja Católica ao convocar o Concílio Vaticano II (1962), que promoveu o ecumenismo, e ao enfatizar uma doutrina social mais liberal através das encíclicas Mater et Magistra e a Pacem in Terris.

A suposição de que tal estado de conservação seria um milagre veio do secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Angelo Sodano, que pediu na segunda-feira 26 uma análise de especialistas sobre o caso. “Os restos do papa João XXIII foram encontrados em sua integridade e alguns quiseram ver nisso o sinal do bom Deus ou de uma santidade”, disse dom Virgílio, que descartou a hipótese de uma obra divina. Para o médico legista Massini, existem muitas causas que podem explicar o porquê de a carcaça humana não apodrecer. Apesar de o corpo de João XXIII não ter sido embalsamado, ele ficou protegido por três caixões: um de cipreste, outro de carvalho e um terceiro – ainda mais vedado – de chumbo. Depois de tudo isso, os esquifes foram colocados numa tumba fria de mármore. Tanta proteção deve ter impedido a presença de oxigênio, essencial para que a carne se desfaça. Existe também a possibilidade de o corpo ter recebido preparos químicos que permitiram sua preservação. “A decomposição dos corpos acontece em duas condições básicas: com a temperatura média de 21º C e umidade constante. É possível conservar o corpo com qualquer variação de um desses fatores”, diz ele. “Nos desertos, por exemplo, onde não há umidade, ou no gelo, devido à baixa temperatura”, explica Massini.

O médico legista também diz que a construção da sepultura é fundamental para a preservação do cadáver. “Se não houver oxigênio, não há como existir microorganismos, porque eles não sobrevivem.” E deve ter sido essa a razão de João XXIII ter escapado da ação deletéria dos vermes. Também há a possibilidade de os parasitos terem devorado apenas a parte interna da carne, sem terem perfurado a pele do papa. “A primeira camada fica preservada e o bicho não a come por fora. O rosto da pessoa fica intacto. É o que acontece com os animais”, detalha o médico legista. A aparência “saudável” do papa pode ser também graças a um processo químico, chamado saponificação, que ocorre às vezes com os cadáveres. Na ausência de umidade e da temperatura favorável à putrefação, a gordura da pele adquire aparência e consistência de sabão. Massini conta que não é o primeiro caso de preservação do corpo pós-morte. Ele mesmo conta uma experiência pessoal. No início dos anos 90, Massini analisou o corpo de um padre que supostamente havia sido assassinado em Conceição do Araguaia, no Pará. O corpo do religioso ficou cinco anos numa igreja, em condições climáticas desfavoráveis à decomposição, e por isso quando retirado do túmulo também se encontrava em bom estado.

O corpo do papa João XXIII está tão perfeito que as autoridades do Vaticano decidiram deixá-lo em exposição no altar principal da Capela de São Jerônimo, na Basílica de São Pedro, em Roma. Um novo sepultamento deve ocorrer dentro de quatro meses. A decisão de transferi-lo das catacumbas para a capela foi do próprio papa João Paulo II.