O carioca J., 42 anos, acordou na terça-feira 27 em seu apartamento de dois quartos em Copacabana, no Rio de Janeiro, transpirando de calor, mas com um incômodo frio na barriga e uma forte dor no estômago. Nem sequer procurou um médico porque há 20 anos conhece de cor e salteado os sintomas da TPE, como os mergulhadores de águas profundas chamam a “tensão pré-embarque”. Era o último dia para J. pagar contas e deixar tudo organizado em casa para os 28 dias seguintes. Na manhã de quarta-feira, ele já estaria a bordo de um barco de mergulhadores na Bacia de Campos. O acidente com a P-36, a maior plataforma do mundo, que afundou em 20 de março, chamou a atenção dos brasileiros para a vida nas águas profundas, onde a Petrobras mantém um corajoso e sofrido exército de homens na perigosa missão de tirar óleo das profundezas do mar.

Um desses soldados que prestam serviço à Petrobras estava na proa de um barco às 7h da manhã de 16 de março, quando presenciou uma parte do mais espetacular acidente da história da estatal. Era, segundo ele, a quarta explosão sofrida pela P-36. As três anteriores tinham ocorrido de madrugada e até então não se sabia que o resultado dos estouros seria o afundamento da plataforma, um dos símbolos mais ostensivos de um Brasil que tinha a intenção de se tornar, em 2005, auto-suficiente na produção de petróleo. Apesar do relato do mergulhador, a Petrobras nega a quarta explosão e mantém a versão de que só houve duas, à 0h20m e à 0h50m.

“Nosso navio foi convocado para auxiliar nos trabalhos de resgate. Me acordaram às 5h e às 7h eu ouvi um barulho enorme. Vi fogo e a formação de um cogumelo de fumaça. Quando peguei a câmera, só pude captar o cogumelo, e não o momento da explosão. No instante em que a P-36 começou a inclinar, indicando que iria afundar, senti um vazio no estômago, como se tivesse perdido alguém muito próximo. Ver aquele enorme vazio no lugar da plataforma foi triste para qualquer brasileiro, mas para quem viu de perto foi insuportável”, conta I., 47 anos, o mergulhador que captou as imagens com uma câmera amadora. “Foi a foto mais deprimente que tirei na vida”, lembra.

Perigo – Ver uma obra tão fantástica de engenharia explodir e afundar não é comum na vida dos mergulhadores. Mas J. e I. não podem reclamar de falta de emoção na carreira que começaram a trilhar por volta dos 20 anos de idade. A preparação e a duração de cada mergulho é perigosa. Eles passam até 28 dias incomunicáveis, nadando nas profundezas ou mal acomodados dentro de um espaço de 20 metros cúbicos. Antes da descida começa o processo chamado saturação. O mergulhador é submetido à pressurização, que dura até 24 horas, no caso dos que executarão um trabalho a 300 metros de profundidade. Abaixo disso, o serviço só pode ser feito por robôs. Os mergulhadores devem suportar uma pressão 31 vezes maior do que a atmosférica normal. O objetivo da preparação é acostumar o corpo à pressão exercida pelo mar, em águas profundas.

“Todos sabem que, se houver um erro grave de cálculo de quem controla a saturação ou uma falha de equipamento que elimine a pressurização repentinamente, a gente explode, os olhos saltam, o estômago pode sair pela boca”, diz J., diante do olhar até hoje surpreso da mulher B., com a qual está casado há 18 anos e tem dois filhos. A sessão de pressurização pode durar de três a 24 horas, dependendo da profundidade em que o mergulhador deve realizar seu trabalho, geralmente de conexões ou reparos nos tubos de exploração. Em cada câmara são postos quatro mergulhadores, que passam o tempo todo deitados ou fazendo o mínimo de movimentos para acostumar o corpo à nova pressão.

Feita a pressurização ou saturação na câmara, os mergulhadores saem em direção ao chamado sino, uma geringonça ainda menor, de quatro metros cúbicos. O sino então é lentamente baixado até o local do serviço, onde fica até oito horas seguidas até retornar à câmara. Geralmente, descem dentro do sino três mergulhadores: o bell man, que fica no comando da pequena nave, e dois homens que saem do compartimento para realizar o trabalho no mergulho propriamente dito. Quando a equipe conclui sua missão ou chega a hora de ser substituída, os mergulhadores ainda devem se submeter à descompressão, também na câmara, que pode durar de três dias (se o mergulho tiver sido a 100 metros de profundidade) a 11 dias (à profundidade de 300 metros).

J. e I. são amigos, integrantes de uma confraria acostumada às aventuras e aos sofrimentos de uma profissão absolutamente dependente das encomendas da Petrobras. Por isso aceitaram falar com ISTOÉ sob a condição de não serem identificados. “Ficar queimado com a Petrobras significa sair do mercado”, dizem. Com um salário de R$ 2 mil, além de R$ 6 mil por cada mergulho (são no máximo quatro mergulhos por ano), eles não consideram os perigos e as privações físicas o maior problema da carreira. Nem o risco de morrer em uma descompressão malfeita assusta tanto os mergulhadores como os efeitos psicológicos da vida no mar, onde cada barco geralmente tem um telefone para 70 tripulantes. A Petrobras terceiriza os serviços de mergulho e não exige das empresas contratadas nenhuma assistência psicológica ao trabalhador. Ao contrário dos trabalhadores efetivos da Petrobras, que têm 21 dias de folga após trabalharem 14, os terceirizados, como os mergulhadores, trabalham 28 e folgam 14.

“O pior de tudo é quando você está mal e a cabeça começa a pensar besteira, idéias fixas que não te largam, medos e complexos provocados pelo isolamento”, desabafa I., referindo-se ao fenômeno conhecido como psiconeurose situacional. Se, por um lado, o longo tempo afastado de casa quase sempre desperta saudades e, segundo o próprio I., funciona como antídoto para crises conjugais, por outro, pode resultar em separações, muitas vezes traumáticas. I. está separado da mulher e dos dois filhos há cinco anos e, perguntado se mudaria de profissão se pudesse voltar ao passado e tentar salvar seu casamento, não esconde o arrependimento: “Pela perda da família, a profissão não valeu a pena, mas a gente fica sem alternativa. Além disso, como saber que meu casamento continuaria se eu ficasse mais em casa?”

Desconfiança – A traição é uma das maiores fontes de angústia dos mergulhadores. Muitas vezes motivo de piada, o medo de ser traído pela namorada ou pela mulher tira o sono em alto-mar. “Quem tem mulher tem medo, é claro. A pulga fica sempre atrás da orelha, você deve ter uma confiança absoluta”, diz J., ao lado da mulher. Com o olhar de reprovação, ela reage à desconfiança. “Isso depende da formação que a mulher recebeu e da formação do casal. Acho que o homem sabe quando sua mulher tem maturidade para entender as dificuldades da profissão do marido”, diz B. Ela conta que o glamour da profissão de mergulhador contribuiu para que se sentisse atraída por J. Começaram a namorar quando ambos tinham 19 anos. “Mas hoje não vejo nada de bom nessa profissão. Prefiro mil vezes que ele mergulhe com suas armas de caça. Eu vejo o pôr-do-sol e ele traz um robalo de seis quilos para casa.”