O general Vernon Walters defende o ex-ditador chileno, ataca Fidel Castro e fala da participação dos EUA nos preparativos do golpe militar de 1964

Nem o poderoso banqueiro Nelson Rockefeller teve mais influência nos altos escalões brasileiros, nos últimos 50 anos, do que o general Vernon Walters. Em uma entrevista exclusiva, o ex-diretor da CIA e ex-adido militar de Washington no Brasil faz revelações inéditas como a avaliação que fez do comício do presidente João Goulart, dia 13 de março de 1964, para o governo de seu país. “Fiquei bastante preocupado com aquele comício do presidente, com bandeiras vermelhas.” Walters, um dos mais importantes oficiais da inteligência americana, foi solicitado por vários presidentes dos Estados Unidos para “missões silenciosas”, título de seu primeiro livro. Ele confirmou que a esquadra americana estava nas proximidades da costa brasileira em março de 1964. Mas procurou minimizar o episódio: “Todo país tem planos de contingência para as coisas mais extremas.” Revelou, ainda, que foi convidado especial do primeiro jantar oferecido pelo presidente Castello Branco, em abril de 1964, e também do último, antes de o marechal deixar o cargo, em 1967. Homem de confiança de presidentes republicanos, como Ronald Reagan, George Bush e do atual, George W. Bush, Walters tem opiniões que provocam polêmicas. Disse por exemplo que não aceita um tribunal internacional, e fez a defesa do ex-ditador chileno, general Augusto Pinochet, atacando Fidel Castro, com quem teve um encontro reservado durante o governo Reagan. Nascido em Nova York há 84 anos, ele continua na ativa como homem de inteligência. Admirador de Beethoven, Walters não gosta de beisebol nem de futebol americano. “Prefiro o que é jogado no Brasil”, contemporiza. Ele esteve no Rio para o lançamento de Poderosos e humildes, em que lembra suas relações com reis e presidentes de vários países. Após uma longa noite de autógrafos, na Biblioteca do Exército, Walters falou a ISTOÉ.

ISTOÉ – Em abril haverá, em Quebec, no Canadá, a reunião da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), proposta pelos EUA. O Brasil tem defendido o fortalecimento do Mercosul antes de qualquer debate sobre a Alca. O que o sr. pensa disso?
Vernon Walters

Espero que o Mercosul prospere, porque vai melhorar o padrão de vida das populações do Cone Sul. É um passo neste sentido. O Mercosul foi uma grande iniciativa e deve haver uma compatibilidade da Alca com este mercado da América do Sul. Brasil, Argentina e México têm um papel importante na cooperação econômica da América Latina.

ISTOÉ – O sr. acredita que o Brasil pode ter uma liderança na cooperação econômica da América Latina?
Vernon Walters

Sim, mas tem de exercê-la com estilo discreto. Nós não batemos na cabeça dos canadenses e procuramos não bater na cabeça dos mexicanos. O fato é que o Brasil é o gigante do continente sul-americano e tem uma das principais economias do mundo.

ISTOÉ – O sr. teve boas relações com os regimes militares da América Latina. Superada a guerra fria, pode haver uma consolidação de regimes democráticos na região?
Vernon Walters

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Oxalá. Espero que sim. Mas nunca sabemos. Isso depende da vontade de cada nação, da vontade do povo, que deve decidir.

ISTOÉ – Estas suas palavras servem também para Cuba?
Vernon Walters

Sim. Mas Fidel Castro nunca fez uma eleição, em 40 anos de poder. Mas quem fez eleições, como o general Augusto Pinochet, é muito criticado. Pinochet fez eleições e, em uma delas, ele perdeu por 3% dos votos.

ISTOÉ – O sr. acredita que o governo de Pinochet foi menos ditatorial do que o de Fidel Castro?
Vernon Walters

Não sou eu que acho, mas os fatos. Depois do que tem sido feito com o Pinochet, qual o ditador que vai querer devolver o poder ao povo? Pinochet tem sido muito maltratado por aqueles que assumiram o poder, de acordo com o compromisso de transição assumido com o general na época.

ISTOÉ – Mas por que o sr. defende Pinochet, acusado de crimes contra os direitos humanos?
Vernon Walters

Quando Pinochet chegou ao poder, a Câmara dos Deputados, o Senado e o Supremo Tribunal haviam pedido às Forças Armadas que fizessem algo para impedir as violações constantes da Constituição pelo governo de Salvador Allende. É claro que houve violações no governo Pinochet, mas houve também sublevação, mataram policiais, mataram soldados. O Chile também tinha o maior Partido Comunista da América Latina.

ISTOÉ – Então o sr. é contra o julgamento de Pinochet?
Vernon Walters

O povo chileno é que deve decidir. Se eu fosse chileno estaria um pouco preocupado, porque o grande herói da independência, Bernardo O’Higgins, passou os últimos anos de sua vida exilado no Chile. Não tenho observado a gratidão política como uma das características das nações.

ISTOÉ – A Justiça espanhola não pode julgar Pinochet por crimes cometidos contra espanhóis no Chile?
Vernon Walters

A Espanha pagou com um milhão de mortos o preço de evitar uma ditadura comunista. O juiz Baltasar Garzón não está em condições de dar lições de democracia a quem quer que seja. Aliás, ele está em dificuldades com as leis espanholas.


ISTOÉ – Em sua avaliação há perspectiva de uma abertura democrática em Cuba?
Vernon Walters

É muito difícil. Eles não fazem eleições. Não se sabe se o povo quer ou não quer. Tudo o que eu sei é que em meu país há três milhões de refugiados cubanos. Falamos em Pinochet. Cuba e Chile têm a mesma população, de 13 milhões de habitantes. Do Chile chegaram 30 mil refugiados. Nunca houve uma eleição em Cuba. Castro é o único chefe de governo que conheço que nunca fez uma eleição disfarçada. Na Rússia havia eleições, assim como na Alemanha nazista. Em Cuba não. Espero que haja, porque vejo o desespero de cubanos que chegam nos Estados Unidos, em jangadas, em pneumáticos, o desespero destas pessoas para sair deste paraíso de Fidel Castro.

ISTOÉ – O sr. acredita que era mais fácil sair do Chile no regime Pinochet?
Vernon Walters

Para sair do Chile houve menos dificuldades do que para os anticastristas saírem de Cuba, que é uma ilha. Eu disse uma vez, nas Nações Unidas, que o Fidel Castro tinha feito de Cuba o maior país do mundo. A administração estava em Havana, o governo em Moscou, o Exército estava em Angola (para onde eles tinham enviado tropas) e a população na Flórida, nos Estados Unidos.

ISTOÉ – Não há uma solução para o impasse entre Cuba e EUA?
Vernon Walters

Eu cheguei a visitar Fidel Castro, em Havana, por ordem do presidente Ronald Reagan. Ficou evidente que Castro não queria nem eleição, nem democracia, nem modificação em seu regime. Muita gente fala de Pinochet. Mas queriam que Pinochet ficasse preso em um país estrangeiro e que Castro fosse recebido com festa e música. Isso me parece uma certa injustiça.

ISTOÉ – Como o sr. analisa o novo mapa político mundial, com o fim da guerra fria?
Vernon Walters

O mais importante foi o desaparecimento do sistema soviético não democrático. A Rússia agora tem liberdade. O que mais me impressionou em minha última viagem à Rússia foi a ausência do temor. Quem não gosta do presidente se manifesta sem medo. Ano passado a produção industrial da Rússia cresceu 7%.

ISTOÉ – E a retaliação recente da Rússia contra os Estados Unidos, expulsando diplomatas americanos?
Vernon Walters

O russo ainda se sente abalado pelo que aconteceu, pelas perdas que teve no passado. Foi o país que mais perdeu homens na Segunda Guerra Mundial.

ISTOÉ – O sr. é favorável à criação de um tribunal internacional para julgar violação de direitos humanos?
Vernon Walters

Não. Cada nação tem as suas tradições, sua maneira de ser, suas leis.


ISTOÉ – A hegemonia dos EUA no mundo pós-guerra fria é benéfica para o resto do mundo?
Vernon Walters

Dizem que somos culpados de tudo. Culpa pela extinção das ditaduras comunistas eu aceito, com muito prazer. Custou ao meu país US$ 400 bilhões a sustentação da luta contra o sistema mais antidemocrático, com exceção do de Hitler, que houve no século passado.

ISTOÉ – Mas há quem culpe os Estados Unidos por tudo. Os americanos querem ser os xerifes do planeta, promover intervenções?
Vernon Walters

Eu lhe digo só uma coisa. Participei de cinco guerras na minha vida: Segunda Guerra Mundial, guerras civis contra os comunistas na Grécia, Vietnã, Coréia. Durante a guerra do deserto, em 1991, contra o Iraque, nossa embaixada em Bonn recebeu 372 tiros de metralhadoras. Não quero que meu país, os Estados Unidos, seja xerife do mundo. Mas não quero viver em um mundo onde não há polícia.

ISTOÉ – O sr. acredita em um acordo para a paz no Oriente Médio?
Vernon Walters

Eu acredito que um acordo é muito necessário, mas confesso, francamente, que não vejo uma solução imediata. Estou muito feliz de não ser o encarregado de achar uma solução para o problema do Oriente Médio. Houve progresso. Mas ainda há muito por fazer. Estive recentemente em Israel, passei por algumas partes do país, e em poucos dias houve novos conflitos.

ISTOÉ – O sr. teme o crescimento da esquerda na Europa?
Vernon Walters

Ganharam em Paris. Ganharam os socialistas, assim como em Lyon, mas não são comunistas. Em muitas outras cidades a direita tomou conta. A França é suficientemente rica, estável e democrática para se oferecer a um governo socialista.

ISTOÉ – Voltando a falar do Brasil e dos EUA, o sr. acredita que possa prosperar a tese de alguns analistas, inclusive americanos, de que a soberania na Amazônia deve ser relativa?
Vernon Walters

Eu espero que não prospere. O Brasil é quem decide o que vai fazer na Amazônia. Quem está em condições de ameaçar a soberania do Brasil? Só os brasileiros devem decidir sobre a Amazônia brasileira. Não cabe aos estrangeiros dizer o que fazer com a região.

ISTOÉ – Como o sr. responde às acusações de ter participado das conspirações que levaram ao golpe de 1964?
Vernon Walters

Eu era adido militar e não fiz parte de nenhuma conspiração. Era uma testemunha bem-informada, mas participante não. Pessoalmente, fiquei bastante preocupado com o comício do presidente João Goulart, no dia 13 de março de 1964, na Central do Brasil, com as bandeiras vermelhas.

ISTOÉ – A esquadra americana estava pronta para intervir no Brasil na crise de março de 1964?
Vernon Walters

Isso foi um plano de contingência. Todo país tem isso. Tenho certeza de que os canadenses têm um plano para o caso de os Estados Unidos os invadirem. Mas não quer dizer que o Canadá espere por isso.

ISTOÉ – O plano de contingência seria para a eventualidade de uma crise mais grave no Brasil?
Vernon Walters

Eu acho que a intervenção de tropas estrangeiras, a menos que haja uma provocação absolutamente insustentável, é desaconselhável.

ISTOÉ – A situação em março de 1964 era realmente crítica?
Vernon Walters

Eu era estrangeiro e vivia no Brasil há alguns anos, mas cabia aos brasileiros julgar se era ou não uma crise insustentável. Eu tinha o direito de observar, mas não de participar.

ISTOÉ – Quais foram as suas relações com as autoridades brasileiras naquele momento?
Vernon Walters

Eu mantive cordiais relações com o presidente Goulart, que se encontrou várias vezes com o embaixador Lincoln Gordon. Nós esperávamos o melhor para o Brasil, que foi o único país da América do Sul que havia participado da Segunda Guerra Mundial.

ISTOÉ – Como o sr. reagiu à posse do marechal Castello Branco, no momento em que substituiu Goulart?
Vernon Walters

Eu já o conhecia da Segunda Guerra Mundial. Ele não quis permanecer no cargo. Apenas cumpriu o restante do mandato do presidente Goulart. Defendia a democracia.

ISTOÉ – O sr. se relacionou com alguns presidentes brasileiros. Quais mais o impressionaram?
Vernon Walters

Estive no Brasil pela primeira vez em abril de 1943, no tempo do presidente Vargas. Depois fiz a Segunda Guerra Mundial com a Força Expedicionária Brasileira (FEB), e voltei em seguida ao Brasil, no governo Goulart, como assistente do adido militar, por quatro anos. Conheci Getúlio Vargas, Dutra, Juscelino Kubitschek, que me convidou a visitar o Brasil, Castello Branco, José Sarney e Itamar Franco. Gostei do Juscelino, que fez muito pelo Brasil, e do presidente Castello Branco. Conheci, também, Carlos Lacerda, que era governador da Guanabara, e também apresentei meus cumprimentos ao governador Leonel Brizola.

ISTOÉ – Com o marechal Castello Branco o sr. chegou a ter alguns encontros reservados?
Vernon Walters

Ao rechaçar a proposta de ser candidato à reeleição, ele indicou a natureza democrática de seu caráter. Depois de assumir a Presidência, em abril de 1964, ele me convidou para o primeiro almoço. Eu disse: presidente, o sr. vai ter problemas. Vão dizer que está recebendo instruções dos americanos, etc. e tal. Ele me respondeu com uma frase: “Estou convidando um velho companheiro da guerra.” No último dia de seu mandato, me convidou para um jantar. Eu lhe disse: presidente, o sr. se lembra do primeiro almoço? Ele respondeu logo: “Agora só podem dizer que você tomou a última ceia comigo.”


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