Em meio à festa cinematográfica que a apresentadora Xuxa organizou para comemorar o primeiro aniversário de sua filha Sasha, em julho de 1999, a primeira-dama do Rio de Janeiro, Rosinha Mateus, entregou à menina um presente singelo: um coelhinho de pelúcia. Comprado em 13 de julho, na loja Office Price Brinquedos Ltda, em Niterói, o bichinho era mais do que um simples mimo. Por trás do gesto cordial da família do governador Anthony Garotinho existe uma história de mau uso do dinheiro público. O coelhinho da Sasha foi comprado com recursos que saíram da Casa Militar do Governo do Estado. O valor da compra não é escandaloso – o bichinho custou R$ 69,60 –, mas não foi o único caso em que Garotinho colocou a mão no dinheiro do contribuinte para presentear amigos, correligionários e até parentes. Na mesma festa de aniversário de Sasha, a primeira-dama Rosinha estava acompanhada de seus filhos, inclusive o pequeno David, então com quatro meses, que havia sido adotado recentemente pelo casal. Na festa, David estreou um novo guarda-roupa. Em 21 de junho, ele havia ganho três conjuntos e um par de sapatos que custaram R$ 335. Em 6 de julho, ganhou mais três conjuntos, um cueiro, uma manta e um macacão, que custaram R$ 410. As duas compras foram feitas na Petit Poly, loja de roupas infantis localizada próximo ao Palácio, e as notas foram emitidas em nome do “Gabinete Militar – Residência Oficial do Governador”.

Garotinho gosta de fazer uma social com o dinheiro que poderia estar usando pelo social. A vice-governadora, Benedita da Silva, por exemplo, foi agraciada em 1999 com um relógio que custou R$ 1,7 mil. O presente típico de pai para filho em dia de formatura universitária foi comprado na famosa Amsterdam Sauer em 13 de julho e pago com o dinheiro do povo. Nove dias depois, o caixa do Gabinete Militar voltou a sangrar por causa da compra de um outro relógio. Desta vez, a despesa de R$ 183 foi realizada na FSLB Comércio e Indústria de Roupas e Objetos de Adorno Ltda. Também coube ao Gabinete Militar custear o presente dado ao deputado Alberto Brizola (PDT), que em julho de 1999 se casou com a publicitária e cantora evangélica Marina de Oliveira. Garotinho enviou aos noivos uma baixela Rotanda e um balde para gelo, comprados na Companhia Brasileira de Artes, Presentes e Utilidades, em Ipanema, pelo preço de R$ 348,30. Junto à nota fiscal, um bilhete informa que o presente foi entregue ao porteiro do prédio onde iriam residir os noivos.

Jóia – Os agrados para políticos amigos ultrapassam as fronteiras do Rio de Janeiro. Em 30 de julho de 1999, o governo do Rio gastou R$ 164 na Monte Carlo Jóias do Shopping RioSul para adquirir uma gargantilha em ouro 18 quilates com brilhante, conforme demonstra a nota fiscal 0352. A jóia foi dada de presente à senadora Emília Fernandes (PDT-RS). Na quarta-feira 28, o governador negou que existisse qualquer irregularidade em seu governo. “Jamais usei o dinheiro público para fins particulares”, disse Garotinho por telefone a ISTOÉ. Questionado sobre a existência das notas fiscais emitidas em nome do governo, ele se esquivou: “Isso vocês perguntem para o chefe do Gabinete Militar. Não tenho nada com essa história.” O coronel Paulo Mello, responsável pelo Gabinete Militar, limitou-se a dizer que não tem conhecimento dessas compras e que as contas de 1999 foram aprovadas pelo Tribunal de Contas do Estado. Na quinta-feira 29, o secretário de Governo, Augusto Ariston, disse a ISTOÉ que os presentes foram comprados pelo governador e não pelo Estado. “Garotinho deu o dinheiro a funcionários, que inadvertidamente pediram as notas em nome do Gabinete Militar”, afirmou. Não é bem assim. Dois funcionários que participaram dessas compras foram ouvidos por ISTOÉ e asseguram que elas foram feitas com dinheiro público. Algumas teriam inclusive sido pagas com cheques. Logo no início do governo, o deputado Paulo Ramos alertou o governador sobre esses procedimentos. Como resposta, disse ter ouvido de Garotinho que não havia motivo para se preocupar. Dois ou três meses depois, em uma reunião do PDT, o governador voltou a tocar nesse assunto. “Ele disse que na Prefeitura de Campos fazia a mesma coisa com frequência”, lembra o deputado.

A aprovação do Tribunal de Contas não foi o bastante para garantir a lisura das compras feitas por Garotinho. Na Assembléia Legislativa, os deputados Cidinha Campos (PDT) e Paulo Ramos (PDT) não estão convencidos da legalidade dessas operações. “O governador está usando verba secreta para benefício próprio”, acusa o deputado Ramos, ex-aliado de Garotinho. Em outubro do ano passado, a deputada Cidinha Campos fez um requerimento para que o Poder Executivo enviasse a relação de despesas com verba secreta. Em 18 de dezembro, o secretário Ariston respondeu ao ofício, porém nada esclareceu. Disse que os gastos questionados pela deputada “destinam-se a atender a despesas necessárias, na Chefia do Poder Executivo, ao cumprimento de suas missões constitucionais e outras, relativas a segurança, transporte, alimentação e outras”. Não consta em nenhuma lei que presentes para amigos se enquadrem nos itens relacionados pelo secretário. Sem a colaboração do governo será impossível saber quanto foi gasto em presentes. Garotinho admitiu na quinta-feira 29 que as verbas para “despesas miúdas” em seu governo aumentaram de R$ 3,7 milhões para R$ 13 milhões. Nas notas obtidas por ISTOÉ está a comprovação de que pelo menos R$ 4,3 mil escaparam do cofre público entre 21 de junho e 30 de julho de 1999.

Contas suspeitas – A engenharia usada para viabilizar essa mamata foi revelada por dois funcionários públicos estaduais que preferem não se identificar. Lotados no Gabinete Militar, eles foram autorizados a abrir contas bancárias que eram usadas para cobrir as mais variadas despesas. Até aí, trata-se de uma situação absolutamente legal. A legislação permite que servidores tenham contas correntes próprias, abastecidas com verbas públicas, para que possam assinar cheques para despesas operacionais, como transporte e alimentação, em cada atividade externa do governador. O problema é que o dinheiro dessas contas foi usado para cobrir os gastos pessoais de Garotinho. Um desses funcionários diz ter recebido em sua conta mais de R$ 160 mil apenas no primeiro semestre de 1999. “Outra flagrante irregularidade está no tempo de duração dessas contas. A lei é clara ao dizer que já na abertura deve constar a data de encerramento da conta, inclusive para proteger o funcionário perante a Receita”, afirma o deputado Ramos. Em outubro do ano passado, atendendo a solicitação do deputado pedetista, a Assembléia requisitou informações sobre essas contas suspeitas. Os deputados querem saber quantas elas são, as datas de abertura e de encerramento e o quanto elas movimentam. Por lei, o governo teria 30 dias para responder, mas até a semana passada nenhum esclarecimento havia sido feito. 

O que diz a lei

O artigo 37 da Constituição Federal trata da moralidade administrativa e subordina qualquer gasto do governo ao “interesse público”. No Estado do Rio de Janeiro, o uso das verbas secretas, das reservadas e dos adiantamentos utilizados para atender às eventuais despesas do gabinete do governador é regulamentado pelo artigo 103 da lei 287, de 4 de dezembro de 1979. No parágrafo terceiro, a lei define como despesas de caráter secreto aquelas “realizadas no interesse da segurança do Estado e da manutenção da ordem política e social”. Como despesas de caráter reservado, a lei define aqueles gastos “efetuados com diligências que exijam sigilo, por tempo limitado”. A compra de presentes não se enquadra nesses casos. A mesma lei permite adiantamentos para o pagamento de despesas extraordinárias ou urgentes. Sobre essas despesas o parágrafo segundo diz: “São aquelas cuja não realização imediata possam causar prejuízo à Fazenda Pública ou interromper o curso do atendimento dos serviços a cargo do órgão responsável.” Nada impede, no entanto, que o governador, quando em missão oficial, possa presentear alguém. Nesse caso, aplica-se o parágrafo primeiro, item dois, da mesma lei 287/79. Nesse caso, o dinheiro sai do Gabinete do Governador e não da verba secreta.