O laudo preliminar feito por peritos da Universidade de Campinas (Unicamp) revelou indícios e reforçou a hipótese de fraude no painel eletrônico do Senado na votação que cassou o mandato do senador Luiz Estevão (PMDB-DF). Além de comprovarem que o sistema comandado nos últimos quatro anos pelo então presidente da casa Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) é facilmente violável, os especialistas da Unicamp descobriram que horas depois de Estevão ter sido cassado alguém mexeu em dois arquivos dos computadores que programam o painel de votação: às 19h30, no “senha.sen.doc”, e 31 minutos depois, no “senador.doc”. “Os atributos responsáveis desses arquivos poderiam ser usados como indícios para investigações de outra natureza”, escreveram os peritos no laudo que divulgaram na terça-feira 27. Um dia depois, os procuradores Guilherme Schelb e Eliana Torelly tiveram uma recuperação parcial de memória e aumentaram a possibilidade de cassação do mandato de ACM por quebra de decoro parlamentar. A dupla confirmou à Comissão de Ética do Senado que, em sua explosiva conversa no Ministério Público no dia 19 de fevereiro – divulgada por ISTOÉ –, Antônio Carlos falou mesmo que tinha uma lista com os nomes de quem votou a favor e contra a cassação de Estevão. “Ao contrário do que se especulava, ficou claro que os procuradores não têm duas versões da conversa, mas uma só”, constatou o senador Antero Barros (PSDB-MT), ao explicar por que a comissão desistiu de promover uma acareação de Schelb e Torelly com o procurador Luiz Francisco de Souza. O medo da cassação levou a tribo do cacique baiano a produzir mais uma versão para sua inconfidência no Ministério Público.

Desculpa – “O senador Antônio Carlos fez uma bravata ao dizer que sabia como todo mundo tinha votado, e alertei-o de que não deveria ter dito isso. Acredito que o senador pode ter comentado com alguém que trouxeram a ele possíveis nomes de quem teria votado, numa espécie de bravata”, tentou justificar o jornalista Fernando César Mesquita – assessor de ACM –, em depoimento à Comissão de Inquérito do Senado Federal. Parecendo um coro ensaiado, os procuradores Schelb e Torelly repetiram aos senadores que também interpretaram a revelação do cacique baiano de que dispunha de uma lista como uma bravata. Na noite da quarta-feira 28, ISTOÉ contou a Fernando César que tinha a informação de que dois arquivos do sistema de votação eletrônica do Senado haviam sido alterados na noite em que Estevão foi cassado. No dia seguinte, o assessor de ACM apresentou uma versão também para essa história: a mexida foi ordenada pelo secretário-geral da Mesa do Senado, Raimundo Carrero, e teve como objetivo retirar do sistema a senha e o nome de Luiz Estevão. “Não tenho conhecimento disso. O normal é que isso tenha sido feito no dia seguinte, por algum técnico, após a cassação ser publicada no Diário do Congresso”, corrigiu Carrero. Versões à parte, a equipe da Unicamp continua trabalhando para tentar recuperar os arquivos e confirmar se houve fraude no painel eletrônico.

Desde a reunião com os procuradores, ACM e sua tropa têm dado explicações contraditórias sobre o que se falou no Ministério Público, numa tentativa de evitar uma punição pelo Senado. Não colaram. No desespero, chegaram a acenar com uma mãozinha para evitar a criação da CPI da Corrupção – da qual ACM se mostra grande defensor no jogo para a platéia e petistas. Quinze dos vinte deputados carlistas preferiram ficar agarrados aos seus cargos federais a contrariar o governo e apoiar a CPI. Os cofres do governo baiano também não permitem o luxo de adesão a rebeliões: o governador César Borges (PFL) teme o fracasso da renegociação da dívida de mais de R$ 400 milhões do Estado com a Caixa Econômica Federal. Nesse jogo duplo, foi tentada uma barganha com o líder do governo no Senado, José Roberto Arruda (PSDB-DF): o senador Paulo Souto (PFL-BA) não assinaria o pedido de CPI e Arruda asseguraria os três votos do PSDB na Comissão de Ética para barrar os depoimentos sigilosos de Schelb e Eliana. Na noite da terça-feira 27, Arruda chegou a comunicar a decisão aos colegas tucanos Lúcio Alcântara (CE), Osmar Dias (PR) e Antero Barros. A manobra não deu certo. Primeiro suplente do PSDB na comissão e autor do requerimento de convocação dos procuradores, Antero não topou a armação, protestou publicamente e constrangeu Arruda. Os tucanos tiveram que votar a favor da proposta de Antero. O líder Arruda, que agiu sem o aval do Palácio do Planalto, acabou levando um puxão de orelha do presidente Fernando Henrique Cardoso. Na mesma noite, Souto subscreveu a CPI. No final das contas, não adiantou nada: no dia seguinte, o PMDB fechou a porteira no Senado e impediu que as oposições alcançassem assinaturas suficientes para que a comissão fosse criada.

Sessão secreta – Com o fracasso da negociação, na noite da quarta-feira 28 os procuradores tiveram que depor aos senadores. Em uma sessão secreta que durou cinco horas, Schelb e Eliana usaram a tática de repetir à exaustão que não se lembravam de passagens delicadas da conversa com ACM e Fernando César. Mesmo assim, acabaram confirmando os trechos publicados por ISTOÉ, entre os quais aquele em que Antônio Carlos – para justificar como soube do voto de Heloísa Helena – afirmou ter uma lista com os votos dos senadores. “Ele disse que conhecia os nomes de todos que votaram a favor de Estevão. Uma lista ou uma relação”, contou Schelb. Foi o suficiente para provocar uma derrapada do senador Waldeck Ornélas, o mais barulhento integrante da tropa de choque de ACM. “Então, está provado que não houve quebra de sigilo. O senador Antônio Carlos disse que só tinha os nomes de quem votou a favor”, reagiu Ornélas para espanto dos colegas de comissão. O curioso é que Schelb mostrou uma memória prodigiosa para se lembrar das intervenções de Fernando César e uma amnésia profunda quando tinha de se recordar das falas de ACM. Foi o caso, por exemplo, do trecho em que Antônio Carlos dá dicas de como pegar o ex-secretário-geral da Presidência Eduardo Jorge Caldas Pereira e chegar a FHC. “Eles confirmaram a essência de tudo, que é o que interessa. Uma interpretação diferente de um detalhe aqui ou acolá não muda esse fato”, avaliou Heloísa Helena. Ainda assim, os dois procuradores passaram por maus momentos.

Intrigado com o sumiço de duas fitas audíveis com a gravação da conversa, Antero Barros protagonizou uma encenação surpreendente e desmontou a versão da dupla Schelb e Eliana de que foi Luiz Francisco quem de fato destruiu as provas. Com seus 97 quilos, Antero reconstituiu a cena em que, depois de uma discussão com os colegas, Luiz Francisco pisoteou as gravações. Depois de muitas pisadas, as fitas continuaram intactas. O que saiu estilhaçado foi a incrível história contada por Eliana para explicar o fim das fitas: teria queimado as gravações porque elas estavam imprestáveis. A procuradora, que é afilhada de casamento de ACM, teve que se defender também da acusação de ter favorecido Rubens Gallerani, assessor e fiel amigo do padrinho Antônio Carlos, acusado de usar a influência do chefe para enriquecer apartir de grandes vendas para órgãos públicos. Uma dessas trasações foi a compra pelo Serviço de Processamento de Dados do Senado de uma sala-cofre da empresa Aceco Produtos para Escritórios e Informática, no valor de R$ 4,5 milhões. Foi mais um lucrativo negócio sem licitação intermediado por Gallerani, na época chefe da representação do governo da Bahia em Brasília. Nas mãos de Eliana, a investigação a pedido de uma empresa concorrente recebeu um parecer pelo arquivamento. A justificativa: só a Aceco tinha o equipamento. Em sua defesa, a procuradora também disse aos senadores que a ligação com ACM não a impediu de apresentar uma queixa-crime contra o mesmo Gallerani. Quando comprou a sala-cofre, o Prodasen era comandado por Regina Borges, nomeada por Antônio Carlos, ex-mulher de um primo do governador da Bahia, César Borges. Era ela também quem dirigia o Prodasen quando Estevão foi cassado. Em ofício enviado à senadora Heloísa Helena, datado de 9 de julho de 2000, Regina assegurou que o painel eletrônico era inviolável. “Não houve erro no processamento de dados da referida sessão, bem como não existe, numa votação secreta, nenhuma possibilidade de se identificar o voto de cada senador”, afiançou. Foi exatamente o contrário do que apuraram os especialistas em engenharia de computação da Unicamp.

Fragilidade – Depois de examinarem os computadores e softwares que fazem funcionar o painel eletrônico, os técnicos da Unicamp encontraram um parque de diversões para qualquer candidato a hacker. Existem 18 diferentes possibilidades de fraude no painel e qualquer aprendiz de programador descobre como votaram os parlamentares e consegue até alterar seus votos. As violações podem ser feitas por qualquer pessoa com acesso ao sistema: senadores, operadores, funcionários da casa e técnicos da Panavídeo, empresa contratada às pressas e sem licitação pelo Senado, às vésperas da cassação de Estevão, para fazer a manutenção do painel eletrônico. Um dos que acompanharam a perícia da Unicamp foi Dirceu Teixeira de Matos, presidente da Comissão de Inquérito, que apura irregularidades no sistema. A bordo de um dos computadores que comandam o equipamento, a poucos metros da Mesa Diretora do Senado, ele testemunhou atônito como um técnico da Unicamp mudava como queria os votos digitados nos 84 terminais de votação do plenário por outros técnicos no papel de senadores. “Sim” virava “não”, “não” virava “abstenção”, e assim por diante. A fraude acontece online, durante o processo de votação. “Nenhuma votação secreta aqui dentro foi realmente secreta”, resume um perito da Unicamp.

Absurdo dos absurdos, os sete computadores do sistema têm entrada para disquete, o que permite a cópia de qualquer coisa que apareça na tela. Alguém com um laptop nas galerias reservadas ao público pode também se comunicar com o computador central, acessar e manipular o arquivo onde estão armazenados os votos. A Unicamp descobriu que atrás do placar eletrônico existem cabos soltos. O sistema nem sequer é criptografado, como acontece em toda empresa. Para entrar no sistema, bastava digitar uma senha padrão, administrator, conhecida por todos os operadores. As senhas dos senadores também não são nada secretas. Técnicos que acompanham as investigações do painel calculam que até 200 pessoas sabem, no total ou em parte, as senhas secretas dos 81 senadores. Como vale sempre o último voto digitado, alguém dentro do plenário que conheça a senha de um senador pode votar por cima de seu voto. “Prefiro acreditar que não tenha aqui dentro senador ladrão de senha, senão estaremos piores que o Carandiru”, desabafou Heloísa Helena, que apóia uma proposta de emenda constitucional do colega Tião Viana (PT-AC) acabando com o voto secreto na casa. “Sinto que estávamos sendo assaltados”, define o senador Roberto Saturnino (PSB-RJ), escolhido relator da fraude no painel na Comissão de Ética.

Ao mesmo tempo que os indícios de fraude acuam ACM, Fernando Henrique trabalha para isolar ainda mais seu antigo aliado. No front baiano, ele tenta rachar o PFL e ensaia até uma cooptação do governador César Borges e da bancada parlamentar carlista. Vai, por exemplo, conversar com Borges na próxima semana. Na guerra política, o presidente está orientando os parceiros tucanos, do PMDB e até do PFL, a aumentar a pressão sobre ACM com o aprofundamento das apurações na Comissão de Ética. Com a confirmação pelos três procuradores de que ACM confessou ter a lista de uma votação secreta, os governistas apostam que os trabalhos na Unicamp e a recuperação de novos trechos da conversa com os procuradores – captada numa fita de início inaudível periciada por Ricardo Molina e agora entregue pelo procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, ao diretor da Polícia Federal, Agílio Monteiro – darão munição suficiente para a cassação do mandato do coronel baiano.