Cazuza estava amando. Exageradamente, e como sempre guiado pelo tipo de personalidade de quem quer urgência e intensidade na vida. Ele e seu objeto de paixão passavam uns dias na Fazenda Inglesa, em Petrópolis, de propriedade dos pais, junto com a cantora e compositora Bebel Gilberto – a recente musa cult dos americanos, filha do papa da bossa nova, João. Certa manhã, o roqueiro acorda a amiga e o namorado dela sacudindo um pedaço de papel dizendo ser o documento de um pacto de sangue feito entre ele e a pessoa amada. “Eles furaram o dedo, achei uma loucura”, lembra a cantora. Mas pouco tempo depois, ela e o baixista Dé, ex-integrante do Barão Vermelho, comporiam a melodia para uma letra de Cazuza que remetia diretamente ao episódio. A canção chama-se Mais feliz, foi gravada em 1986 pela própria Bebel Gilberto, mas acabou tornando-se mais conhecida na voz de Adriana Calcanhotto, no seu álbum Maritmo, de 1998. A história é uma das dezenas que colorem o livro Cazuza, preciso dizer que te amo – todas as letras do poeta (Editora Globo, 416 págs., R$ 39), uma seleção e pesquisa de Lucinha Araujo, com texto e edição da jornalista Regina Echeverria e colaboração do jornalista Mauro Ferreira. Cercada pela emoção que a data exige, a obra será lançada na quarta-feira 4, dia em que o melhor letrista do rock brasileiro completaria 43 anos se não tivesse sido derrotado pelo vírus da Aids, em 7 de julho de 1990.

Com as garras de uma leonina, ao longo das últimas duas décadas Lucinha Araujo vem se dedicando a coletar todo e qualquer material relativo ao filho famoso, que perpetrou o primeiro poema aos 17 anos. “Sou muito perfeccionista”, disse Lucinha a ISTOÉ. “Conforme fui pesquisando, comecei a descobrir letras que eu não conhecia, como a de Sonho estranho, musicada e gravada por Nico Resende, e a de Fratura (não) exposta, gravada por Ney Matogrosso em 1985, que nem ele lembrava mais.” Ao todo, o trabalho da mãe-fã e dos jornalistas levantou um total de 205 letras, somando 65 inéditas e 13 musicadas e não gravadas. Destas, estão prestes a sair do forno Seda pura, que integrará o novo álbum de Simone, e Modernidade, faixa do disco de estréia do ótimo Lulo Scroback, revelação do equivocado espetáculo Cazas de Cazuza. Mas é entre os poemas musicados inéditos que se encontra uma das histórias mais divertidas cercando aquele que, de acordo com seu pai, João Araujo – executivo de uma grande gravadora –, se autodenominava “Rebelde sem calça”.

Chama-se Comprimidos a canção cuja letra nasceu de uma conversa tragicômica entre Cazuza e Rita Lee. A rainha do rock tupiniquim tinha ido visitar o poeta, já combalido pela doença. Sempre bem-humorados, os dois falaram de seus impulsos em apelar aos comprimidos químicos para resolver suas dores existenciais. Rita deu à letra um rock bem pesado. Dez anos depois, o destino da canção ainda parece estar reservado ao baú das memórias. “Apesar do mote da letra já não pertencer mais à minha atual “biografia”, acredito que esta música daria uma boa trilha sonora para os tomadores de Prozac e Viagra, dois remedinhos vendidos nas melhores farmácias do ramo como sendo as drogas da felicidade”, falou Rita a ISTOÉ. “Cazuza e (Renato) Russo, sem dúvida, foram os letristas mais representativos da geração 80”, continua a roqueira. “Sempre gostei do lado irônico e debochado de Cazuza, me dava a impressão que o ‘fundo do poço’ dele era uma festa constante. Mas quando botava a cabeça pra fora e espiava o mundo em volta, aí sim Cazuza se indignava de verdade e soltava os demônios.”

Outro episódio envolvendo Rita no livro refere-se a uma antiga briga dela com o jornalista e produtor Ezequiel Neves, apelido Zeca Jagger, que foi quem impulsionou a carreira do Barão Vermelho e, mais tarde, como ele mesmo diz, transformou Cazuza no filho que nunca teve. “Fui sua madrasta”, brinca. Sem pudor, Rita chama Zeca de abominável. “Este apelido eu mesmo me dei: Abominável Ezequiel Neves”, justifica o crítico. Para ela, o assunto está enterrado. “Hoje sou alfândega: nada a declarar”, diz. Zeca, no entanto, quer colocar gasolina na fogueira. “Eu nunca fui sanguessuga de ninguém, como ela afirma. Ela e o Roberto de Carvalho ficaram com ciúmes porque na época eu estava preocupado com o Barão, uma coisa nova, visceral. Nunca se pode falar um senão dela. Rita nunca quis minha opinião, só minha aprovação, e eu não aguentava mais o aluguel da dupla”, desabafa ele, entre outras frases mais cruéis.

Cronologia – Alheia à polêmica, Regina Echeverria – também responsável pelo depoimento de Lucinha Araujo para o corajoso livro Só as mães são felizes, de 1997 – passou pelo menos uma noite com Zeca e Lucinha decidindo quais das dezenas de entrevistas renderiam as melhores histórias sobre letras conhecidas ou não do grande público. “A Lucinha queria registrar a obra completa de Cazuza com a maior fidelidade”, conta Regina, autora dos pequenos textos opinativos que interligam os 12 capítulos e das cronologias ao fim de cada um deles, situando o poeta em seu tempo. A jornalista também colheu o sensível depoimento de João Araujo. Pela primeira vez ele fala tão abertamente em público sobre o filho e o artista. “Como profissional do disco, percebi que Cazuza era talentosíssimo. Mas em nenhum momento fui um protetor, apenas um instrumento inicial para a veiculação de seu trabalho”, diz Araujo, que assinou com o Barão Vermelho o primeiro contrato do grupo, um dos melhores da geração 80.

Apesar da inevitável energia da banda carioca, desde as primeiras fotos dava para notar que era Cazuza o dono da pose, da tal atitude proclamada por todos os olheiros do show business. A determinação o fazia pegar fogo, intencionalmente ou não. Bons exemplos foram seus encontros madrugada afora com Lobão – outro desregrado de sua geração, que até hoje ainda chacoalha o estabelecido com seus uivos. Os dois provocavam verdadeiras rebeliões contra os vizinhos. Das celeumas nasceu Glória, junkie bacana, título em homenagem à irmã do Grande Lobo. “Cazuza adorava minha irmã e eu detestava a Glória na época. Ela estava morando em casa, bebeu e jogou álcool no cobertor”, relembra o compositor de O rock errou. De forma irônica, a música é um pedido de desculpas. “Meu caro vizinho/não me leve a mal/depois que eu fiquei sozinho/dei pra beber bem além do normal”, diz uma das estrofes. Irreverência era mesmo sua marca. Genialidade pop também. Não à toa, Cazuza cunhou uma de suas maiores mentiras sinceras. “Não gosto de andar só com preto, só com judeu, só com gay. Gosto de viver é com todo mundo junto. Me sentiria mal em levantar bandeiras de minorias. Sou mesmo é maioral.”