Quase 100 anos depois de ter sido humilhada pelas potências européias, a China desponta neste apagar de luzes do século XX como a potência emergente mundial, desafiadora e enigmática como em seu passado glorioso. Mas a humilhação teve um papel decisivo. No nascer do século, em 1901, acabava a guerra dos Boxers, uma revolta nacionalista iniciada um ano antes por uma organização secreta chinesa que pretendia interromper o comércio de produtos estrangeiros no país, algo que arrui-nava os camponeses e provocava grande desemprego. Embora esmagada, a rebelião Boxer teve tal impacto que impediu a China de ser partilhada pelas potências euro-péias, além da Rússia e do Japão, e abriu caminho para o ciclo revolucionário que começou em 1911, com a República, e terminou em 1949, com a Revolução Comunista de Mao Tsé-tung.

Investimentos – Depois de anos de convulsões e reviravoltas sangrentas no início do regime comunista, que puseram o país de pernas para o ar, como o desastroso Grande Salto para Frente (1958-1960) e a não menos desastrosa Revolução Cultural (1966-1976), a China entrou, a partir de 1978, numa era de reformas econômicas de tipo capitalista. Isso trouxe uma enxurrada de investimentos estrangeiros ao país e tirou grande parte da população da miséria, embora tenha aumentado consideravelmente o fosso entre a China urbana, dinâmica e capitalista, e a China rural, anacrônica e estatal. Por isso, a virtual potência mundial ainda se assenta sobre pés de barro. O futuro da China, escreveu L. Paul Bremer, da Fundação Kissinger, “estará determinado pela resposta que se dará às seguintes perguntas: o país poderá evoluir do tradicional domínio estatal da economia a um sistema de livre mercado integrado à economia mundial? Avançará em direção a uma sociedade mais pluralista, ao mesmo tempo que mantém a unidade nacional?”

Burocracia – Para tentar responder a essas perguntas, é preciso estar atento à história do país. É bom lembrar que, na China, o passado desempenha um papel bem mais marcante do que nos países ocidentais. Um exemplo emblemático é a burocracia chinesa, a mais antiga do mundo, que sempre governou o país de maneira autocráti-ca. Parafraseando Karl Marx, a tradição ancestral oprime como um pesadelo a mente das gerações atuais. Como lembra Paul Bremer, a memória de rebeliões que no passado derrubaram várias dinastias chinesas deve ter estado na mente dos dirigentes comunistas em 1989, quando sufocaram os estudantes na praça da Paz Celestial e, recentemente, quando baniram a seita budista Falun Gon, que dizia ter mais membros do que o Partido Comunista.

O maior desafio à liderança chinesa é manter o triângulo que sustentou o equilíbrio iniciado com a era Deng: crescimento econômico acelerado, estabilidade social e centralização política. Um dos vértices desse triângulo se viu ameaçado pela recente crise econômica que balançou os tigres asiáticos. Os investimentos estrangeiros diminuíram e as exportações despencaram. Essa situação mostrou a urgência de se reduzir o fardo que representa para a economia da China as deficitárias empresas estatais, que ainda respondem por quase um terço do PIB. O problema é que esses mastodontes são responsáveis por pelo menos 100 milhões de empregos diretos. Qualquer tentativa de racionalizá-los mergulhará o país num brutal desemprego, afetando mais um vértice. E os dirigentes chineses jamais se esqueceram da máxima de Lao Tzu, filósofo taoísta do século III: “Os sábios governam esvaziando as mentes e enchendo os estômagos.” O que faz supor que a integração à economia mundial deverá ocorrer de maneira controlada e gradual.

Mesmo que essa integração da China à globalização se acelere com a entrada do país na Organização Mundial do Comércio (OMC), poucos apostam numa democratização substantiva do regime. O controle do partido sobre a sociedade é bem mais sutil do que foi no passado. O professor francês Jean-Luc Domenach, autor do livro A Ásia em perigo, afirma que a corrupção institucionalizada foi a fiadora da transição do jacobinismo socialista de Mao à liberalização capitalista de Deng e sucessores. “A corrupção foi o que permitiu a Deng Xiaoping operar a transição do comunismo puro e duro para a fase atual, mais complexa, de abertura relativa do regime. Sem as recompensas mafio-sas oferecidas pelo esquema montado por Deng Xiaoping, o conjunto dos dirigentes, incluindo os militares, jamais teria concordado em dar um passo adiante no sentido da liberalização. No caso das sociedades que, no passado, foram terroristas, totalitárias, trágicas, mesmo, pela prática do genocídio, a corrupção é o início da sabedoria e da humanização.”