O grande desafio para as lideranças políticas do século XXI é como lidar com a questão do renascimento do nacionalismo. Ao contrário do que algumas cabeças pensantes apressadamente imaginaram, a globalização da economia, a internacio-nalização das instituições políticas e a difusão de uma cultura universal pelas diferentes mídias não eliminaram a realidade do Estado-nação, muito menos a da diversidade cultural. Pior: no final deste século, o separatismo espraiou-se como um rastilho de pólvora, trazendo à tona questões que até a guerra fria pareciam adormecidas, como, por exemplo, a identidade, o direito de um grupo e o direito de um indivíduo, contrapostos entre si. Se o fantasma da destruição nuclear foi amenizado, emergiram as múltiplas guerras civis, expressões de velhas rixas étnicas e religiosas.

A consequência aterrorizadora da febre nacionalista foram os genocídios justamente na era em que a humanidade parecia dar mais importância à consolidação dos direitos do homem. Em Ruanda, nada menos do que um milhão de pessoas, a maioria da etnia tutsi, foram massacradas, num banho de sangue que mereceu pouca atenção da mídia. Algumas dessas explosões de ódios étnicos desencadearam a destruição dos Estados nacionais e estremeceram conceitos que pareciam já estar estabelecidos, como a idéia de fronteira, explica o sociólogo catalão Manuel Castells. A Indonésia, por exemplo, por muitos anos tida e havida como um Estado unitário, está à beira de um esfacelamento. Não apenas o Timor Leste, ocupado manu militari pelos indonésios em 1975, mas também regiões inteiras, como a província de Aceh. Já a Bósnia-Herzegovina, palco de um pavoroso processo de “faxina étnica”, era um Estado completamente artificial, criado no regime comunista, cujas divisões étnicas e culturais remontam à Antiguidade.

O nacionalismo, que nas suas origens tinha por objetivo consolidar a identidade de um Estado-nação, transformou-se muitas vezes neste século em instrumento de manipulação de líderes políticos interessados em reforçar seu poder. Onde há desmoronamentos de regimes e onde há relações sociais instáveis, ou seja, onde a sociedade se sente insegura, ter uma língua e uma cultura em comum são razões para acreditar que o nacionalismo é a saída. E é exatamente aí que mora o perigo: a exclusão de minorias ameaçadas pelo poder dessas maiorias étnicas, uma variante da famosa “tirania da maioria” de que falava Alexis de Tocqueville.

O sérvio Slobodan Milosevic é exemplo claro de como um líder demagógico conseguiu catalisar os anseios e descontentamentos de um povo em um movimento nacionalista em benefício próprio. No caso da guerra da Bósnia-Herzegovina, sérvios cristãos-ortodoxos, croatas católicos e bósnios muçulmanos estavam amarrados durante décadas pela camisa-de-força de uma ditadura. O historiador britânico Erich Hobsbawn alerta para o fato de que não foram apenas as velhas disputas étnicas que desencadearam os separatismos balcânicos e do Cáucaso. “O que acirrou estes problemas não foi a força do sentimento nacional e sim a desintegração do poder central.”

A propalada nova ordem mundial, então, poderia ser considerada como a “nova desordem mundial”, com embates violentos e cicatrizes nas sociedades que poderão levar décadas para serem curadas. O mundo comporta hoje cerca de 40 conflitos que acontecem desde nossa vizinha Colômbia, passando pelos bolsões de miséria na África e entrando na alma do coração da Europa. E as correntes migratórias acabam deflagrando conflitos depois de algumas décadas. Ainda não sabemos, por exemplo, qual será o destino de um milhão de judeus russos que aportaram nos últimos anos no Estado de Israel, que abriga seis milhões de pessoas.

E como fica então o conceito de minoria? No caso dos albaneses, eles são a maioria perseguida dentro do Kosovo. Porém, eles já possuem o seu próprio Estado. Hoje, o planeta abriga cinco mil povos e apenas 217 Estados-nações. E podemos até assistir ao surgimento de novos Estados, como o Timor Leste e a Escócia, mas as Nações Unidas não estão interessadas em aprovar uma série de outras formações num processo global em que acontecem outros tipos de reagrupamentos.

Sem dúvida nenhuma, o desmantelamento da União Soviética e da Iugoslávia veio como efeito dominó para várias nações. Os curdos na Turquia, os ogonis na Nigéria, os tutsis em Ruanda são alinhavados por um objetivo em comum: a autodeterminação nacional. Sem esquecer os palestinos em Israel. Essa autodeterminação tende a crescer na medida em que aumenta a interdependência econômica, a formação dos blocos econômicos – como a União Européia e o Mercosul – e as uniões políticas que se integram no mundo globalizado. Isso porque acredita-se que nacionalidades que conseguem constituir-se em Estados têm mais chances de participar do sistema global.

Nesta configuração mundial desordenada, figuram ainda as sequelas da colonização nos países africanos, que desde o processo de independência dos anos 50 e 60 vêm desembocando em conflitos sangrentos. Porém, o mundo parece não prestar atenção quando os interesses econômicos não batem à porta das grandes potências, como é o caso de Serra Leoa e de Angola. Por isso, é muito pouco provável que, no curto prazo, alguma coisa seja feita para aliviar guerras de muitas décadas que provocam desastres assombrosos como a luta entre cristãos e muçulmanos na Somália.

A idéia de uma grande nação islâmica ainda sacode mais os limites do que pode ser chamado de Estado. O fracasso das tentativas de modernização, como a conservadora no Irã ou a nacionalista laica na Argélia e no Egito, fez com que o islamismo surgisse como elemento aglutinador das massas desvalidas. Na Constituição do Irã, por exemplo, está escrito que “todos os muçulmanos constituem uma única nação”. Apesar das recentes exigências da própria sociedade iraniana por mudanças, o islamismo continua sendo um elemento agregador. E a concretização de uma identidade islâmica desponta também em setores marginalizados dos países industrializados: na juventude francesa originária do Norte da África ou entre os turcos na Alemanha.

Até onde há uma forte identidade nacional, como nos Estados Unidos, as minorias estão revendo seus papéis. O conceito de cidadão americano está mudando à medida que as chamadas minorias desenham um novo mapa populacional no país. Os latinos, por exemplo, serão maioria até o ano 2025.

O Estado-nação ainda deve perdurar com legitimidade como unidade política no século XXI. Entretanto, não será uma surpresa se o mundo tiver de lidar com a separação dessas duas palavras hoje unidas por um hífen. E como afirma Hobsbawn: “Não devemos nos iludir. Acrescentar mais uma dúzia de Estados-membros à ONU não proporcionará a nenhum deles mais controle sobre seus assuntos antes do que tinham antes de serem independentes. Não serão resolvidos ou diminuídos os problemas das culturas ou de qualquer outro tipo de autonomia no mundo, não mais do que foram resolvidos em 1919.” Neste ano, a Conferência de Paz de Paris, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial, criou 12 novos Estados soberanos, baseados no princípio da homogeneidade étnica. Isso não evitou a eclosão da Segunda Guerra Mundial.