A fé não costuma falhar e também não deve acabar no próximo século. Em plena era da revolução da informática, da expansão de pesquisas científicas em diversas fronteiras, da medicina vencendo doenças como a Aids e o câncer, Deus terá seu lugar garantido. “O progresso da ciência vai intensificar as crenças. Quanto mais rápidas forem as transformações na sociedade, mais as pessoas precisarão de uma âncora, de uma estabilidade. E ela pode estar na religiosidade”, acredita o rabino Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista. Para o líder judeu, ciên-cia e religião se completam. “Ambas buscam o sentido de um mundo que muitas vezes parece sem sentido; mas enquanto a ciência investiga, a religião interpreta”, explica. Segundo ele, a ciência pergunta “como?” e a religião, “por quê?” e “para quê?”. “Embora o desenvolvimento científico vise o bem da humanidade, nem sempre o uso de descobertas é correto; por exemplo, a clonagem. Certos avanços tornam a religião, ou algum tipo de código moral, cada vez mais relevante”, observa.

O progresso tecnológico, afinal, tem sido avassalador há pelo menos 100 anos. “No final do século XIX havia a tese de que o mundo moderno seria totalmente racional e as visões religiosas e místicas tenderiam a desaparecer. Mas isso não aconteceu”, compara o teólogo João Décio, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O estudioso lembra que o positivismo – importante corrente filosófica nascida na França em meados do século passado – afirmava que viveríamos no século XX a fase lógica da humanidade, “o império da ciência”. “E o símbolo maior desse mundo desencantado seriam as metrópoles, onde há uma grande racionalização da natureza: a eletricidade substitui a luz do sol, a urbanização vence as imposições naturais do espaço.” Mas basta lembrar o último Dia de finados, quando a missa do padre Marcelo Rossi reuniu mais de 600 mil pessoas nas ruas de São Paulo, para se considerar que existem mais coisas entre o céu e terra do que julga nossa vã filosofia. “Estamos entrando em um século supercientífico, mas acredito que as religiões ocupam um espaço insubstituível. Elas não estão aí para solucionar problemas. Religião não é médico, não é governo”, diz João Décio.

Embora o mundo hoje presencie o crescimento do fundamentalismo e do fanatismo religioso – principalmente no islamismo, religião que mais se expande no planeta –, o teólogo afirma que a religiosidade no futuro deve ser marcada pelo pluralismo. Ele credita à globalização o fato de que hoje não se podem mais mapear crenças em função da geografia. “Se antes o islamismo vivia no Oriente Médio, o catolicismo no Ocidente e o budismo no Extremo Oriente, hoje não existe mais essa hegemonia”, afirma. “Tenho alunos islâmicos que não têm ascendência árabe e me afirmaram ter encontrado nessa religião o que não acharam em outras.” Ou seja, a escolha religiosa será cada vez mais individual. Nesta mesma linha de raciocínio, o sociólogo da Universidade de São Paulo Reginaldo Prandi, autor de cinco livros sobre religião, diz que o século XXI será o tempo da banalização de Deus. “O padre Marcelo é o símbolo dessa tendência. A religião, que antes era um instrumento de formação de valores, está se tornando um produto de consumo imediato e passível de rejeição.” Ele diz que amanhã, como já é hoje, o espetáculo será muito mais importante do que a doutrina religiosa. “Em geral, o católico que segue o padre Marcelo tem uma fé supérflua. Ele escolhe uma religião como opta por uma marca de sabão em pó”, diz ele. “O padre Marcelo é o grande sucesso católico do final deste século, mas os líderes religiosos do futuro terão inúmeros perfis, pois o cardápio da fé será muito variado – tanto em termos de religiões como de líderes.”

Reginaldo Prandi compara a gama religiosa que existirá no século XXI ao leque de canais presentes hoje numa tevê a cabo. “Você pode mudar de religião como muda de canal, literalmente, visto o números de programas religiosos no ar.” O estudioso ressalva, porém, que nem todas as religiões podem ser transformadas em “campeões de audiência”. Segundo ele, há rituais como os do espiritismo kardecista, da umbanda e do candomblé que têm dificuldade de entrar na mídia, pois não priorizam a palavra, o discurso. São religiões nas quais os espetáculos têm mais força quando presenciados ao vivo. “Além do que, na tevê, as religiões são verdadeiras empresas; e este não é o caso daquelas, que são muito mais modestas.” A fé a cabo, contudo, é vista com bons olhos pelo sociólogo. “Quanto mais escolhas, maior a liberdade. Tanto que o islamismo, uma religião autoritária, está crescendo em países pobres, onde não existe democracia nem liberdade.” Ele aposta que, nos países democráticos, cada indivíduo poderá compor sua própria religião, como um mosaico da fé. “O esoterismo e as seitas místicas, cada vez mais populares, são os melhores exemplos dessa interiorização das crenças.” O rabino Henry Sobel também acredita que a religião deve estar nas ações de cada pessoa. “O problema é que as instituições não são democráticas e seus líderes são autoritários”, critica. “Se as pessoas percebessem os equívocos das religiões institucionalizadas ao longo da história, elas exerceriam sua fé se aproximando do próximo e não discriminando o diferente.”