O sexo transbordou tantos limites neste século que na década de 70 havia uma convicção de que, no futuro, todos seríamos bissexuais. A idéia deriva da surpresa com o mundo homossexual que emergia das sombras e a recente conquista de se viver a sexualidade de forma menos castradora. A sociedade se espantava em constatar que tal galã, na verdade, preferia outros galãs a moças carnudas, que a virgindade antes do casamento podia ser eliminada sem culpa como um véu de noiva e que essencialmente o mundo não era tão pão pão queijo queijo quanto se imaginava. O século XX foi marcado pela perda da idéia de conduta do que é certo ou errado. Passaram a não existir papéis definidos para homens e mulheres e isso causou um forte sentimento de insegurança, de falta de rumos. Na década de 60, a repressão sexual foi sendo distendida e, por consequência, confundida com uma aparente falta de fronteiras. Mas, aos anos do amor livre e da premissa de que “ninguém é de ninguém”, uma onda moralizante e científica se ergueu diante da ação restritiva da Aids. Assim, ainda que a bissexualidade tenha se transformado até em tema de novela, não se tornou, por enquanto, em uma definição de gênero da humanidade. “Desde que o mundo é mundo, o simbolismo das civilizações é feito em cima das diferenças entre homem e mulher. Por isso, não há chance de um belo dia acordarmos dizendo: ‘Não sou nem homem nem mulher. Quanto mais queremos ignorar as diferenças, mais elas nos fazem prisioneiros’”, analisa Mary Del Priore, historiadora da USP.

Na verdade, as diferenças tendem a se acirrar. Homens e mulheres vão buscar cada vez mais sua identidade e redefinir o papel de cada um. “O desafio no futuro será aprofundar o que nos diferencia. Já tentamos a igualdade de gênero e vimos que não funciona”, alerta Mary. A inseminação artificial e a clonagem são conquistas científicas que também irão causar crescentes transformações nas relações. Para a ensaísta francesa Michèle Sarde essa realidade pode levar a dois cenários. Um deles resulta num abismo na convivência dos pares. “Os homens e as mulheres poderão se fechar em guetos e viver cada dia mais separados. Até porque a união deles não será mais necessária para a procriação”, analisa no livro de entrevistas O século. Mas, dentro de uma perspectiva positiva, as novas tecnologias podem ser aliadas numa redefinição de papéis, incluindo aí a aceitação dos homossexuais. Cada um exercendo sua diferença, mas com igualdade de direitos. “As relações enfim vão se tornar igualitárias de seres humanos livres dos preconceitos, das antipatias e das discriminações”, analisa Michéle. Seria a promessa da realização da utopia da liberdade sexual que enterraria de vez a dualidade da excessiva fiscalização dos corpos e a da imposição de transar.

Como herança da era da Aids, as relações fora do casal tornaram-se perigosas e a promiscuidade uma temeridade. E esse quadro pode se agravar. “A Aids foi responsável pela reaparição de uma prática sanitarista da sexua-lidade. E a questão do número de parceiros e tipos de práticas se tornou central, mas não na perspectiva que se tinha na década de 60. Outras transformações virão com a presença cada vez maior de doenças sexualmente transmissíveis e, se não forem controladas, a dicotomia entre sexo seguro e sexo com risco irá se gravar”, analisa Mary Del Prio-re. A ciência deu o braço para o sexo neste século e, enquanto ele tiver essa conotação de ser também uma ameaça à vida, não irá abandoná-lo. “Já assistimos a isso hoje, mas provavelmente vai se acirrar no futuro, com o crescimento de ciências da sexualidade, na sua forma terapêutica ou psicológica”, acredita ela.

O controle será ainda -maior, os manuais que definem o que é uma boa ou má sexualidade podem ficar ainda mais descritivos e o sexo, já bombardeado na mídia, será explorado até como commodities nas Bolsas de Mercadorias. No entendimento de Mary Del Priore, no campo do desejo humano os corpos não agem por instinto. Eles fazem o que sabem por “terem aprendido” e sabem o que fazem porque “elaboram representações e imagens sobre isso”. Isso significa que o sexo ganha significados em todas as esferas da vida humana e é uma tradução de vários componentes sociais e históricos.