Pode parecer estranho, mas um filme como Tudo sobre minha mãe, do espanhol Pedro Almodóvar, sobre uma rede de relações afetivas que inclui uma mulher madura, um travesti, uma prostituta e uma freira, tem tudo para ir parar num álbum de famíliares. “Cada vez mais, a partir de agora, o que vai caracterizar nossos vínculos familiares é a capacidade de cuidar do outro, e não o registro em cartório, o gênero ou, sequer, a herança genética”, avalia o pediatra Leonardo Posternak, autor do livro E agora, o que fazer? A difícil arte de criar os filhos. Em sua experiência de consultório, ele aprendeu que um homem, uma mulher e uma criança não constituem obrigatoriamente uma família, ainda que sejam marido, mulher e filhinho. “Tem gente que cumpre todas as convenções sociais, mas não consegue na prática estabelecer vínculos profundos”, diz o médico. Ele vê delinearem-se, aos poucos, parentescos baseados exclusivamente na capacidade de cuidar. “No filme de Almodóvar, o travesti cuida da amiga, a mulher ajuda a freira, a mãe cuida do pai e o pai cuida do cachorro. Acho que isso sintetiza essa nova idéia de família”, aponta Posternak. Ele não exclui a possibilidade de que essas relações sejam bem-sucedidas, do ponto de vista dos filhos. “Não temos ainda elementos para afirmar que efeito isso terá, mas já sabemos que o modelo tradicional também não dá garantia de felicidade”, diz Posternak, e admite: “Talvez uma lésbica possa ser um bom pai.”

Graças aos avanços da engenharia genética, a família do próximo século poderá colocar em prática, de maneira inédita, as mais minu-ciosas fantasias maternas e paternas. Se até hoje sonhávamos com um filho doutor ou com uma filha independente, em breve, poderemos escolher ter um filho alto, louro, esportista, intelectual e introspectivo, entre outras especificações. Não é obrigatoriamente uma conquista positiva, alerta a psicanalista Magdalena Ramos, coordenadora do Núcleo de Casal e Família da PUC-SP. “O grau de liberdade do indivíduo sobre o próprio destino pode se reduzir muito, condenando os filhos a lidar com expectativas familiares muito mais pesadas”, ela avalia. Como consumidores exigentes, os pais do futuro podem considerar legítimo o seu desejo de interferir na vida dos filhos e manifestar desaponto diante dos menores des-vios em suas encomendas. “E é certo que, por maior que seja o controle sobre o resultado, haverá diferenças entre o sonho e a realização, já que o ambiente continuará a agir em combinação com a herança genética na definição da personalidade e até das reações físicas.” Chocar-se contra o projeto dos pais é uma experiência antiga na história do homem. Mas, a menos que se desenvolva a consciência de que é preciso respeitar as escolhas do outro, nas próximas gerações pode-se viver amargamente a sensação de não corresponder ao sonho dos pais. “É uma experiência muito difícil de superar”, ela afirma.

O álbum de família do próximo século deve mostrar com mais nitidez imagens que já se esboçam no presente. Como aponta a historiadora Mary del Priore, da Universidade de São Paulo, autora de História da infância, as relações conjugais, se existirem, serão cada vez mais fugazes e ter mais de um filho vai ser uma escolha rara. Vai depender dos parentescos verticais – avós, pais, filhos, netos – manter a idéia de família, entendida como um núcleo de pessoas que compartilham emoções e uma história comum. Os avós, que vão viver muito mais, poderão estar presentes ao longo de toda a vida do neto, e terão sua influência amplificada, enriquecendo o repertório de crianças sem irmãos, tios ou primos. Independentemente do modelo que prevalecer – aberta, fechada, matriarcal, refeita ou fraturada –, pertencer a uma família deve continuar sendo essencial para o desenvolvimento de adultos saudáveis. “Esse é um desejo profundamente arraigado, um conceito que vai continuar a gerar símbolos e a ser reproduzidos a perder de vista”, prevê a historiadora.