Tão remota quanto a própria humanidade, a religião é capaz de mudar o curso da História. Frequentemente, ela risca novas fronteiras no mapa e até derrama o sangue de irmãos, quando a fé cede lugar ao fanatismo. Mas há um lugar em que as mais distintas doutrinas religiosas convivem de modo pacífico. No Brasil, elas se misturam no dia-a-dia da população, numa espécie de laboratório espiritual que pode e deve se transformar em modelo de tolerância e boa vontade. A relação dos indicados ao prêmio de O Brasileiro do Século em Religião é prova disso. Resultado da análise de um eclético júri (além de representantes de praticamente todas as tendências religiosas, inclui pesquisadores de Teologia, Antropologia e Sociologia), a lista é encabeçada por dom Hélder Câmara e dom Paulo Evaristo Arns. Nela existem lugares, entretanto, para a ialorixá Mãe Menininha do Gantois, o médium Chico Xavier e o líder da Igreja Universal do Reino de Deus, bispo Edir Macedo. Sem contar nomes que moram no coração da mitologia popular, como Padre Cícero e Irmã Dulce. Nesse painel democrático, cabem ainda o rabino Henry Sobel, que mesmo sendo português de nascimento e cidadão americano por naturalização, construiu seu trabalho ecumênico no Brasil, onde mora desde 1970, e o teólogo Leonardo Boff, um dos fundadores da Teologia da Libertação, que inspira os católicos de esquerda. Caberá mais uma vez ao leitor de ISTOÉ, que já escolheu Ayrton Senna (categoria Esportista), Chico Buarque (Músico), Fernanda Montenegro (Artista Cênica) e Machado de Assis (Escritor), definir agora os 20 religiosos que terão suas biografias publicadas em fascículo especial em junho.

Segundo os dados oficiais mais recentes do IBGE (que datam de 1991), 83% dos brasileiros se declaram católicos. Os evangélicos compõem 9% da população de cerca de 147 milhões de habitantes. "Posso assegurar que, atualmente, 50 mil pessoas abandonam o catolicismo a cada mês", afirma o pastor evangélico Ronaldo Didini. Alguns líderes evangélicos chegam a contabilizar 25 milhões de almas em seu rebanho no País. "O fenômeno Edir Macedo obrigou o catolicismo a dividir sua hegemonia no Brasil e, por causa dele, foi criado o carismático padre Marcelo Rossi", provoca Didini (Marcelo Rossi, por sinal, também figura na relação dos indicados). "Muitos católicos lêem búzios, frequentam templo budista e ainda assistem ao sermão do pastor evangélico. Nem por isso deixam de se considerar católicos", diz Ordep Serra, antropólogo da Universidade Federal da Bahia. "Já encontrei pai-de-santo que se diz católico e ainda considera o espiritismo excelente contra o mau olhado. No fundo, o brasileiro acha que todas as religiões são boas. Algumas servem a determinado fim, enquanto outras são mais eficazes para outros objetivos", analisa Lísias Nogueira Negrão, antropólogo da USP. "A competição acirrada entre as religiões aguça a curiosidade de muitos brasileiros, que acabam aderindo a várias ao mesmo tempo", conclui o pesquisador.

Na lista definida pelos jurados de ISTOÉ, os católicos representam 70% dos indicados, a maioria deles integrantes da hierarquia da Igreja, embora haja vez para leigos como o advogado Heráclito Sobral Pinto (um ardoroso defensor dos ateus comunistas perseguidos por regimes de exceção) e o escritor Alceu Amoroso Lima. "É importante que haja um equilíbrio entre conservadores como dom Eugênio Sales e os que se dedicam a causas sociais como dom Pedro Casaldáliga e Aloísio Lorscheider", pondera o professor Ari Pedro Oro, do curso de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

No total, foram citados 290 nomes. Dom Hélder Câmara lidera com 25 indicações, seguido de dom Paulo Evaristo Arns, com 23. Alziro Zarur, o último a garantir um lugar entre os eleitos, teve apenas quatro votos. É um número baixo, se levarmos em conta que, nas demais categorias, o patamar mínimo para figurar entre os indicados era sete ou oito indicações. Isto se aplica porque vários jurados não conseguiram completar os 30 nomes. Alguns dos eleitos foram inicialmente solicitados a integrar o júri, mas acabaram entrando na relação dos eleitos. É o caso de Henry Sobel, e os católicos Frei Betto e Leonardo Boff. Os três tiveram seus votos anulados.

Ficaram, como sempre, muitos nomes importantes fora da lista definitiva. Um exemplo é o de Madre Maria Pacífica do Mosteiro das Clarissas Enclausuradas, uma religiosa mineira de 63 anos. Citada pela jornalista e escritora Valéria Martins, ela vive em clausura num mosteiro da Gávea, no Rio, há 42 anos, orando pela paz no conturbado planeta. Já o padre jesuíta César Augusto dos Santos indicou o educador Paulo Freire, criador de método revolucionário de alfabetização. Segundo o jesuíta, "Freire aplicou sua cristandade de modo discreto em projetos educacionais". Uma lembrança inesperada foi a do roqueiro Raul Seixas, que ganhou o voto do teólogo Mário Sérgio Cortella. "As letras de Raul estão impregnadas de espiritualidade, embora não possamos esquecer os defeitos do corpo, como o uso de drogas e o alcoolismo", diz Cortella. Ele votou também na poeta Adélia Prado – "os poemas dela expressam sacralidade", afirma o teólogo.

A eleição dos religiosos do século mobilizou jurados de Norte a Sul. No Recife, o maestro Lindbergh Pires e os padres Paulo Menezes e Antonio Amaral, da Universidade Católica de Pernambuco, marcaram uma reunião para definir os eleitos. Depois de muita conversa, decidiram enviar uma relação conjunta para ISTOÉ. Em Porto Alegre, o padre Luís Marubim pediu tempo para pensar e, enquanto tomava chimarrão para espantar o frio do outono, chegou à conclusão de que só havia dois religiosos que mereciam a indicação como os mais importantes do século. Não por coincidência, certamente, eram os dois superiores dele na Cúria Metropolitana da capital gaúcha, dom Cheviche e dom Fernando Ávila. Passados alguns dias (e muitas rodas de chimarrão depois), o padre Marubim fez questão de ampliar sua lista para dez nomes. Quando, afinal, chegou a uma conclusão definitiva, ligou para abençoar a redação: "Se fizerem um bom trabalho, os profissionais da ISTOÉ ganharão o Reino dos Céus", prometeu ele.

Nesta primeira etapa, portanto, o leitor elegerá as 20 personalidades religiosas que neste século se destacaram no reino dos homens.

 

 

Uma escolha ecumênica
Candidatos para todas as religiões

Dom Hélder Câmara O "bispo vermelho", como era rotulado pelo governo militar nos anos 60 e 70 por causa de sua defesa dos mais humildes, nasceu em Fortaleza, em 1909, e ordenou-se em 1931. Na década de 30, apoiou o integralismo, movimento de ultradireita liderado por Plínio Salgado, mas depois assumiu postura progressista. Foi um dos fundadores da CNBB, em 1952. Atualmente é arcebispo emérito de Olinda e Recife. 25 votos

 

Dom Paulo Evaristo Arns Intransigente defensor dos direitos humanos, denunciou a tortura de presos políticos durante o regime militar. Natural de Forquilhinha (SC), nasceu em 1921. Nomeado arcebispo metropolitano de São Paulo em 1970, tornou-se cardeal em três anos depois. Nos anos 70, criou a Comissão de Justiça e Paz na capital paulista. Atualmente é arcebispo emérito da Arquidiocese de São Paulo. 23 votos

 

Padre Cícero Um dos maiores mitos nordestinos, Cícero Romão Batista (1844-1934) nasceu em Crato (CE) e foi santificado em 1973. Ordenou-se sacerdote em Fortaleza, em 1870. Dois anos depois, fixou-se em Juazeiro. No período de 1877-79, quando a região era assolada por uma grave seca, destacou-se na incansával ajuda aos miseráveis. Elegeu-se governador do Ceará (1913) e, posteriormente, deputado federal. 22 votos

 

Irmã Dulce Modelo de caridade, Maria Rita de Souza Pontes (1914-1992) nasceu em Salvador (BA). Em 1933, ingressou na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição, do Convento de São Cristóvão, em Sergipe. Em 1988, o presidente José Sarney a indicou para o Prêmio Nobel da Paz. 21 votos

 

Alceu Amoroso Lima Poeta e pensador católico, escrevia sob o pseudônimo de Tristão de Athayde (1893-1983). Converteu-se em 1928, recebendo a eucaristia das mãos do padre Leonel Franca. Em 1967, o papa Paulo VI o nomeou membro da Comissão Pontifícia Justiça e Paz, em Roma. 17 votos

 

Frei Damião Filho de agricultores da região de Bozzano, norte da Itália, Pio Giannotti, nome de batismo do frei capuchinho Damião (1899-1997), foi soldado e lutou na Primeira Guerra antes de se tornar religioso. Chegou ao Brasil em 1931, depois de se doutorar em Direito Canônico e Teologia Dogmática em Roma. Considerado sucessor de Padre Cícero, é venerado como um santo no Nordeste. 16 votos

 

Mãe Menininha do Gantois Uma das mais conhecidas ialorixás do Brasil atuou por 64 anos no Terreiro do Gantois, na Bahia (1893-1986). Natural de Salvador, exerceu influência não apenas entre os adeptos do candomblé, mas também entre políticos, artistas e intelectuais. 16 votos

 

Chico Xavier Dotado de poderes mediúnicos desde criança, Francisco Cândido Xavier (nascido em Pedro Leopoldo, Minas Gerais, em 1910) converteu-se ao espiritismo em 1927. Em 1931, deu início à psicografia. 15 votos

 

Leonardo Boff Teórico da Teologia da Libertação, frei Genésio Darcy Boff nasceu em Concórdia (SC), em 1938. Defende a participação da Igreja Católica em defesa dos oprimidos. Suas críticas à cúpula da Igreja o obrigaram, em 1984, a depor na Congregação para a Doutrina da Fé, no Vaticano. 15 votos

 

Padre Leonel Franca Sacerdote jesuíta nascido em São Gabriel (RS), Leonel Franca (1893-1948) foi educador e filósofo. Ingressou na Companhia de Jesus em 1908. No Brasil, fundou a Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1940. 12 votos

 

Dom Sebastião Leme Sacerdote nascido em Pinhal (SP), Sebastião Leme da Silveira Cintra (1882-1942) foi sagrado o mais jovem bispo em Roma (1911) com a função de auxiliar do arcebispo do Rio. Em 1916 foi elevado a arcebispo em Olinda e Recife, atuando como crítico da ignorância religosa das elites brasileiras. 12 votos

 

Dom Luciano Mendes de Almeida Nascido no Rio, em 1930, ordenou-se presbítero em Roma (1958) e bispo em São Paulo (1976). Foi eleito presidente da CNBB (1987) e arcebispo de Mariana (MG) em 1988. 10 votos

 

Jackson de Figueiredo Líder católico e escritor nascido em Aracaju (SE), Jackson de Figueiredo (1891-1928) foi fundador do Centro Dom Vital. Na década de 20, converteu-se ao catolicismo e atuou como defensor do anticlericalismo, combatendo as idéias liberais e o socialismo. 10 votos

 

Frei Betto O frade dominicano Carlos Alberto Libânio Christo nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1944. É assessor da Comunidade Eclesiais de Base para a pastoral operária de São Bernardo do Campo (SP). 10 votos

 

Henry Sobel Rabino nascido em Portugal, com cidadania americana, Henry Sobel (1944) reside no Brasil desde 1970. É presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista. 9 votos

 

Cardeal Aloísio Lorscheider Cardeal arcebispo da Arquidiocese da Basílica de Aparecida (SP), nasceu em Estrela (RS) em 1924. Ordenou-se bispo em Roma (1962). 9 votos

 

Padre Júlio Maria Júlio César de Morais Maria (1850-1916), sacerdote católico nascido em Angra dos Reis (RJ), exerceu influência marcante na vida eclesiástica em sua época. Lutou para que a Igreja abandonasse os vínculos com a monarquia. 9 votos

 

Dom Pedro Casaldáliga Poeta e escritor, o espanhol Pedro Casaldáliga, nascido em 1928, radicou-se no Brasil e fundou a Comissão Pastoral da Terra, destacando-se na defesa dos índios. 8 votos

 

Dom Lucas Moreira Neves Nascido em 1925, em São João del Rey (MG), estudou teologia na França, foi arcebispo da Bahia (1987-1998). Atua na Prefeitura da Congregação para Bispos do Vaticano e preside a Comissão Pontifícia para a América Latina. 7 votos

 

Dom Eugênio de Araújo Sales Sacerdote católico, nasceu em Acari (RN), em 1920. Ordenou-se em 1943, sendo cardeal de Salvador (1968-1971). Conhecido por suas posições conservadoras, é arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro, desde 1971. 7 votos

 

Padre Donizete Na década de 50, milhares de romeiros foram atraídos para Tambaú, interior de São Paulo, para serem abençoados por ele. 7 votos

 

Edir Macedo Edir Macedo Bezerra, nascido em 1945, em Rio das Flores (RJ). É líder da Igreja Universal do Reino de Deus, fundada em 1976. 7 votos

 

Heráclito Sobral Pinto Nascido em Barbacena (MG), o advogado católico Heráclito Fontoura Sobral Pinto (1893-1991) defendeu o ateu e líder comunista Luiz Carlos Prestes e a legalidade da posse de Juscelino Kubitschek. 6 votos

 

Madre Paulina A italiana Amabile Visintainer, conhecida como Madre Paulina (1865-1942), veio ao Brasil em 1875. Milagreira, foi beatificada em Florianópolis pelo Papa João Paulo II, em 1991. 6 votos

 

Padre Ibiapina José Antonio Maria Ibiapina (1912-1983) foi ordenado padre aos 47 anos. Atuou como missionário no Nordeste, ajudando vítimas da cólera. 5 votos

 

Padre Marcelo Rossi Nascido em 1967 na cidade de São Paulo, Marcelo Mendonça Rossi é considerado um dos maiores representantes católicos da Renovação Carismática. 5 votos

 

Dom José Ivo Lorscheiter Bispo de Santa Maria (RS), nasceu em São Sebastião do Caí (1927). Foi secretário-geral da CNBB (1979-1987). 5 votos

 

Padre Josimo Tavares Padre da Paróquia de São Sebastião do Tocantinópolis (MA) e coordenador da Comissão Pastoral da Terra nos anos 80, padre Josimo (1953-1986) morreu assassinado em Imperatriz (MA), em meio aos conflitos pela posse da terra. 5 votos

 

Cardeal Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta Nascido em Bom Jesus do Amparo (MG), Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta (1890-1982), atuou na arquidiocese de Aparecida (SP) em 1964. 4 votos

 

Alziro Zarur Pregador cristão carioca, Alziro Zarur (1914-1979) foi fundador da Legião da Boa Vontade. 4 votos

 

 

Uma seleção divina
Conheça os jurados escolhidos por ISTOÉ

 

Ordep Serra Professor de Antropologia da Universidade Federal da Bahia e membro da SBPC.

 

Eduardo Hoornaert Belga, membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina.

 

César Augusto Garcia Líder budista há 20 anos da Associação Brasil Soka Gakkai Internacional.

 

Ronaldo Didini Pastor evangélico carioca, é presidente da ONG Liga da Fraternidade.

 

Pierre Weil Reitor da Unipaz (Universidade Holística Internacional de Brasília).

 

Sérgio Margulies Rabino da Associação Religiosa Israelita (RJ).

 

Pierre Sanchis Nascido na França, é professor de Antropologia da UFMG.

 

Mohamad Said Mourad Vereador muçulmano de São Paulo e líder da Mesquita Brasil.

 

Lísias Nogueira Negrão Professor de Sociologia da USP e presidente do Centro de Estudos da Religião Duglas Teixeira Monteiro.

 

César Augusto dos Santos Padre jesuíta, presidente da Associação Internacional Anchieta.

 

Ari Pedro Oro Doutor em Antropologia pela Universidade de Paris, é professor da UFRGS.

 

Fani Lerner Primeira-dama do Paraná e presidente do Programa do Voluntariado Paranaense.

 

Arnaldo Beltrami Monsenhor nascido em Ourinhos (SP), faz parte da comissão de ética do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo.

 

Mário Sérgio Cortella Filósofo e professor-doutor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP.

 

Lindbergh Pires Padre fundador do Madrigal da Universidade Católica de Pernambuco.

 

Angélico Sândalo Bernardino Membro da Comissão Episcopal de Pastoral da CNBB.

 

Raymundo Damasceno Assis Mineiro, secretário-geral da CNBB.

 

Paulo Menezes Padre da Universidade Católica de Pernambuco.

 

Valéria Martins Jornalista e escritora, autora de Encontros com Deus.

 

José Oscar Beozzo Professor de Teologia e coordenador do Centro Ecumênico do Serviço à Evangelização e Educação Popular (Cesep).

 

Joseph Mahfouz Nascido no Líbano e naturalizado, é arcebispo maronita do Brasil desde 1990.

 

Paiva Netto Diretor-presidente da Legião da Boa Vontade (LBV).

 

Ronaldo Senna Professor de Antropologia da Universidade Federal da Bahia.

 

Belisário dos Santos Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania de São Paulo.

 

Antonio Amaral Padre e assessor da reitoria da Universidade Católica de Pernambuco.

 

Getulino Nakajima Líder budista em São Paulo e presidente do Comitê de Paz da Associação Brasil Soka Gakkai Internacional.

 

Orlando Silva Pastor e presidente nacional das Igrejas Evangélicas Pentecostais O Brasil para Cristo.

 

Luis Marubim Padre integrante da Cúria Metropolitana de Porto Alegre.

 

Riolando Azzi Professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina.

 

Nilson Fanini Vice-presidente do Conselho Nacional de Pastores do Brasil.