O Brasil dominou a tecnologia do enriquecimento do urânio no início dos anos 80 à custa de uma bem montada operação de espionagem. A revelação, feita a ISTOÉ, é do almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, que durante 15 anos presidiu a Coordenadoria de Projetos Especiais (Copesp), da Marinha. A Copesp chegou a ter 610 especialistas, que visitaram instituições científicas e mantiveram um intenso intercâmbio com colegas de países que detinham a tecnologia nuclear, entre eles Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França e Holanda. Aproveitavam para garimpar informações estratégicas. Pelo menos dois engenheiros tiveram amplo acesso a informações que foram fundamentais para o projeto nuclear brasileiro. Assim, o Brasil pôde concluir, em apenas três anos, o processo de transformação do urânio em combustível nuclear.

"O recurso à espionagem não foi uma opção usada apenas no Brasil, pois outros países fizeram o mesmo para alcançar o domínio de uma tecnologia que nenhuma nação cedia", opina outro almirante, Hernani Fortuna, do Centro de Estudos de Política e Estratégia da Escola de Guerra Naval. Fortuna alega que na ocasião era fundamental para o Brasil adquirir o domínio da tecnologia do enriquecimento do urânio, "o que foi negado ao País pe-los Estados Unidos e por outras nações".

Formado em Engenharia Naval pela Politécnica de São Paulo, com especialização no Massachussetts Institute of Technologie (MIT), o almirante Othon Silva se recusa, naturalmente, a dar detalhes da operação de espionagem. Alega que suas declarações poderiam ser usadas num eventual processo internacional contra o Brasil. Cada palavra sua é proferida com extrema cautela. Segundo ele, as oportunidades de acesso a dados relevantes sobre tecnologia nuclear surgiram nos contatos realizados pelos técnicos brasileiros no Exterior. "Tínhamos uma boa equipe que sabia procurar aquilo que nos interessava", explica. Parte do trabalho do almirante era justamente preparar especialistas para que pudessem filtrar as informações de que o projeto necessitava. "Para quem sabe ver, fica mais fácil o trabalho de levantamento de dados. Você chega a um laboratório e já sabe o que interessa", afirma.

O Brasil havia negociado o acesso da tecnologia de enriquecimento de urânio com a Alemanha em 1975. Na época, porém, os Estados Unidos pressionaram e conseguiram impedir a transferência. O Brasil teve, então, de aceitar a tecnologia alemã do jato centrífugo, que as pesquisas internacionais demonstraram ser economicamente inviável. Uma das desconfianças dos americanos era relacionada com o possível uso da tecnologia nuclear para a produção de artefatos. "No caso do nosso programa esta desconfiança não tinha sentido porque nosso objetivo era usar a tecnologia para fins pacíficos: nunca pensamos em armar os nossos submarinos com ogiva nuclear", afirma Othon.

A desconfiança dos americanos em relação às reais intenções do Brasil e a preocupação dos Estados Unidos em evitar que o País dominasse a tecnologia nuclear fizeram com que o almirante passasse ele próprio a ser o alvo de espionagem. Othon garante que durante dois anos teve como vizinho um agente de informações do Consulado americano em São Paulo, "um homem ligado à CIA". O militar brasileiro residia na rua Fernão Cardim, 140, apartamento 191, em São Paulo. No oitavo andar, exatamente no apartamento 181, tinha um vizinho chamado Ray H. Allard. Othon Silva conta que havia em São Paulo outros agentes ocultos da CIA à procura de informações do setor nuclear. O agente Allard era, então, usado também para desviar as atenções sobre os outros agentes. Segundo o almirante, Ray H. Allard não tinha nenhum trabalho regular, consistindo a sua única atividade na coleta de informações sobre as atividades da Copesp, que presidia, no gerenciamento do programa nuclear. Na sua avaliação, o governo brasileiro falhou ao não tomar providências no sentido de impedir que as ações de espionagem não fossem devidamente denunciadas ao Departamento de Estado americano ou que Allard cessasse suas atividades. O agente escapou sem problemas. Um relatório confidencial da Marinha, cujo teor o almirante confirma, revela que ele desocupou o apartamento de São Paulo dia 26 de julho de 1994 e voltou aos Estados Unidos. "Seu retorno pode ter tido o objetivo de eliminar provas mais concretas do constrangimento que causou ao presidente da Copesp por mais de dois anos", diz o relatório.

 

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A corrida do átomo

1953 O almirante Álvaro Alberto, pioneiro da energia nuclear no Brasil, negocia a aquisição de três ultracentrífugas da Alemanha com a finalidade de garantir o desenvolvimento da tecnologia completa no Brasil. Mas as ultracentrífugas são arrestadas pela polícia americana na Alemanha.

 

1975 O governo Geisel assina o acordo nuclear com a Alemanha, com um projeto ambicioso de construção de oito usinas nucleares, ao custo de US$ 30 bilhões. Os alemães prometem transferir tecnologia para o País fazer o combustível nuclear através do urânio. Mas a pressão americana faz com que a tecnologia adotada seja a do "jet-nozzle" (jato centrífugo), que se revelou economicamente inviável.

 

1976 O Instituto Militar de Engenharia desenvolve um projeto nuclear com a finalidade de proporcionar ao País o acesso à tecnologia. Este projeto evolui, com a criação da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Exército, para pesquisas destinadas à produção de um reator a gás/grafite, com fins pacíficos.

 

1976 O Centro Técnico Aeroespacial (CTA) da Aeronáutica inicia estudos para o enriquecimento do urânio através do laser, que evoluíram para pesquisas com a mesma finalidade que ainda são realizadas.

 


1977 Com apoio do Conselho de Segurança Nacional e da área de informações é desenvolvido um projeto para a produção de uma bomba atômica, capaz de garantir ao País um status internacional de potência nuclear. O projeto não obtém apoio suficiente nem do governo Geisel nem do governo Figueiredo. Um dos mais secretos do regime, o programa da bomba atômica é confirmado, em 1980, pelo então ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Mattos, em reunião reservada com seu colega da Marinha, almirante Maximiano da Fonseca.

 

1979 O ministro da Marinha, Maximiano da Fonseca, envia oficiais ao Exterior, inclusive o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, para estudar o desenvolvimento da tecnologia de propulsão naval de submarinos. O almirante Othon retorna dos Estados Unidos e consegue apoio da USP para recrutar cientistas e estruturar a Coordenadoria de Projetos Espaciais.

 

1982 Técnicos da Marinha e da USP conseguem fazer o enriquecimento do urânio em experiência feita na universidade, que surpreendeu a comunidade científica do País.

 

1987 É feito o anúncio oficial do êxito da experiência, e o Brasil passa a ser o primeiro País do Terceiro Mundo a dominar a tecnologia atômica.


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