Ao abordar a vítima, em pleno Morumbi, um bairro de elite, ele atira e mata um estudante de 20 anos. Vai para casa, janta, fala com os pais normalmente e dorme “sem problemas de pegar no sono”. No Rio, um encanador sequestra e mata seu ex-patrão, de 28 anos, com três tiros na cabeça e quatro nas costas. No Acre, um deputado faz picadinho de um desafeto usando uma motosserra e bandidos obrigam um jovem sequestrado a abrir a própria cova. Crimes como esses, que apavoram as grandes cidades e já amedrontam pacatos municípios do interior, desafiam os governantes e ameaçam ressuscitar o debate sobre o maior tabu da Justiça penal brasileira: a pena de morte.

Uma pesquisa do instituto Brasmarket realizada na terça-feira 5 e na quarta-feira 6 junto a 2.196 paulistanos não deixa dúvida. A grande maioria dos moradores da principal cidade brasileira já mostra simpatia pela instituição da pena de morte. Só 27,8% disseram rejeitar a mais radical das punições. Sua adoção é desejada por 38,6% e outra parcela expressiva, de 28,5%, respondeu que “depende”, ou seja, admite que em certos casos o Estado pague carrascos para executar criminosos. “Eu me surpreendi porque os índices nunca foram tão altos no Brasil, conhecido pela religiosidade”, diz o presidente do instituto, Ronald Kuntz, 45 anos. O fenômeno, segundo ele, é um reflexo direto da impopularidade do presidente Fernando Henrique e do governador Mário Covas, “pela incapacidade do poder público de responder a uma necessidade vital da população”. Na opinião de Kuntz, o fato de um povo religioso aprovar a pena de morte mostra que a sociedade “está com a água no pescoço”. A inundação da violência não poupa nem os comandantes da luta contra o crime. O assassinato do coronel Carlos Nazareth Cerqueira, 59 anos, ex-secretário de Polícia Militar do Rio, ocorrido em 14 de setembro no saguão de um prédio em pleno centro do Rio, continua sendo um mistério para a polícia.

Crueldade – Para o caso do homicida Rogério Ribeiro, o tal que matou em busca de dinheiro para a festa de 18 anos, a pesquisa também detectou uma reação quase unânime da sociedade: 91,4% querem diminuir a responsabilidade criminal de 18 para 16 anos (leia mais à pág. 122). Por uma diferença de três dias em sua idade, o assassino do estudante Rodrigo Damus só deverá passar três anos recluso. Pela lei, ele só praticou um “ato infracional”.

A escalada do crime em São Paulo é de arrepiar, tanto pelos números quanto pela crueldade em vários episódios. Na noite de quarta-feira 6, três homens encapuzados invadiram a escola Vila Nova, em Campinas, e fuzilaram dez estudantes. Três morreram na hora. No dia seguinte, uma médica de 30 anos conseguiu levar a polícia até a casa do administrador de empresas Mauro Lopes, 41 anos, que a estuprara em Guarulhos. O sujeito, pai de dois filhos, confessou ter violentado outras duas mulheres e é suspeito de mais cinco estupros em Pinheiros. Na confissão, o administrador, que ganha R$ 4 mil mensais, disse ter bebido três doses de vodca e que, quando bebe, não consegue se controlar.

A manifestação do desejo da pena de morte ocorre num momento em que o ministro da Justiça, José Carlos Dias, apregoa uma reforma no Código Penal que amenize as punições para esvaziar cadeias, facilitar a readaptação e valorizar os direitos humanos. Ainda é difícil de se encontrar gente de projeção que defenda a pena de morte no Brasil, mas o tema é recorrente nas mesas de bar, com o País acuado por assassinatos bárbaros e cansado de esperar por polícia e Justiça.

É por isso que o resultado da pesquisa não surpreende o subsecretário de Segurança do Rio, Luiz Eduardo Soares, antropólogo e cientista político especialista em violência. Nos anos 80, ele coordenou um estudo que já apontava a morbidez das armas imaginadas pelos cariocas frente ao agigantamento da bandidagem. “Trinta e cinco por cento defendiam tratamentos despóticos como tortura, esterilização em massa, eugenia, proibição de migração, transferência de presos para a Amazônia e até fuzilamento no Maracanã. É a ausência de educação cívica democrática, uma reação selvagem à selvageria da violência”, argumenta Luiz Eduardo.

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O subsecretário é o cérebro de um projeto enviado ao Legislativo para reconstruir as polícias civil e militar, que pode expulsar grande parte dos 40 mil PMs e policiais civis. O sistema é inspirado na renovação da Scotland Yard, há 25 anos. A violência é o maior calo no pé do governador Anthony Garotinho (PDT), que ensaia a demissão de comandantes de batalhões da PM. Em agosto, houve 450 assassinatos no Estado, sendo 80% na região metropolitana.

Frustração – Outra pesquisa de Luiz Eduardo, feita em 1994, traduz em números impressionantes a frustração que empurra o brasileiro para o radicalismo da guilhotina. Dos inquéritos policiais que apuravam homicídios dolosos naquele ano, nada menos do que 92,2% não chegariam à Justiça. Só 7,8% viravam denúncias do Ministério Público. Na Alemanha, o índice é de 90%. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, de 95%. “Essa incapacidade da polícia, somada à impunidade dos corruptos e à lerdeza processual, gera perplexidade e repugnância a ponto de se defender o absurdo da pena de morte.”

Para os defensores da cadeira elétrica, absurda é a hipocrisia dos que se dizem contrários à pena capital. Um deles é o deputado federal Luciano Bivar (PSL-PE), 54 anos. Ele não se conformou com o arquivamento do projeto do colega Amaral Netto, que morreu sem ver hasteada sua maior bandeira, a pena de morte. Bivar juntou 200 assinaturas para fazer tramitar uma emenda constitucional de um plebiscito sobre a pena capital, mas só para o sequestrador que mata a vítima. Bivar teve um filho de 22 anos sequestrado no Recife. “Não foi por isso que fiz o projeto. Já tinha a idéia, baseada no clamor de um país em pânico”, afirma. Para ele, o sequestrador pensará mil vezes antes de executar a vítima se tiver a perspectiva da condenação à morte.

Os estudiosos reagem. “Na hora de cometer um crime, bandido não pensa em punição. A perspectiva da morte para ele já existe e a violência não diminui”, argumenta Fernando Salla, 46 anos, do Núcleo de Estudos da Violência, da USP. Salla ressalta os tratados internacionais e as cláusulas pétreas da Constituição para dizer que não faz sentido debater o tema juridicamente. “O discurso pode até dar uma satisfação, mas não há viabilidade da adoção da pena com a Constituição que temos e os exemplos óbvios internacionais de que isso não reduz a criminalidade.”

Desvalidos – “Desde quando criminosos saem de casa com medo de morrer? Antes de pensar na pena de morte, temos um turbilhão de problemas para resolver”, reforça o presidente nacional da OAB, Reginaldo de Castro, 56 anos, para quem não há dúvidas de que os condenados à morte no Brasil seriam os mesmos desvalidos que lotam as prisões. O último censo penitenciário, de 1994, indicava que 95% dos presos brasileiros eram pobres e 87% nem sequer podiam ter um advogado. Pela contagem mais recente do Ministério da Justiça, o Brasil tinha 170 mil presos em 1997, com um déficit de 90 mil vagas. “Temos é de fazer o Estado funcionar para punir. É estarrecedor o número insignificante de condenados por homicídio”, diz Castro, atribuindo à emoção e à falta de reflexão a adesão popular à pena de morte.

“Filosoficamente, eu sou contra, mas diante do que a Nação está vivendo, estou revendo meu pensamento e já apoiaria a pena capital para crimes de extrema crueldade e quando não há qualquer dúvida da autoria”, pondera o presidente do Clube dos Advogados e da Associação dos Advogados Criminalistas do Estado do Rio, Vagner Cavalcanti, 60 anos. O alvo, segundo ele, seriam os sequestros ou estupros seguidos de morte.

A adesão do criminalista ao radicalismo é sustentada por números que realmente amedrontam. Segundo o Datasus, do Ministério da Saúde, 25,33 em cada 100 mil habitantes foram assassinados em 1997. Foram 40.436 mortos, dos quais 20.548 só nos Estados de Rio e São Paulo. O Rio dispara no ranking sinistro. Dos seus 7.996 homicídios, 7.003 foram na região metropolitana, uma taxa de 68,08 por 100 mil habitantes. Na região metropolitana de São Paulo, o índice foi de 54,58, ou 9.202 mortos. O índice nos Estados Unidos, cujo perfil da criminalidade mais se assemelha ao do Brasil, gira em torno de oito por 100 mil habitantes. Na Alemanha, 4,86; na França, 4,11; na Espanha, 2,43; no Canadá, 1,99.

Um dos maiores colecionadores de argumentos pró-pena de morte no País é o deputado estadual do PPB José Guilherme Godinho, o Sivuca, do Rio de Janeiro. Aos 69 anos, Sivuca cumpre o terceiro mandato graças ao lema “bandido bom é bandido morto”. Folclórico, ele recorre até à Bíblia para sustentar que a Igreja não tem motivos para excomungar a pena de morte. “Jesus, na hora da morte, disse que seu pai tinha dado a Pilatos o poder de tirar sua vida. E São Tomás de Aquino, um dos maiores teólogos, dizia que quem poupa o lobo condena as ovelhas”, ilustra Sivuca. Ele foi um dos “Doze homens de ouro”, como ficaram conhecidos os policiais de elite carioca escalados em 1968 para enfrentar a onda de assassinatos de taxistas à noite. Três décadas depois, Sivuca expõe os métodos pouco ortodoxos do grupo. “Depois de três meses de trabalho, passamos cinco anos sem ter um taxista morto. Mortos foram os bandidos. Se reagiam, era bala neles, mas não sou imbecil de dizer em público que matei tantos ou quantos”, esquiva-se, lembrando, ao mesmo tempo, que qualquer crime daquela época já estaria prescrito.

O problema de pessoas como Sivuca são os argumentos que abrem caminho para a guilhotina ficar em mãos despóticas num país de frágeis tradições democráticas como o nosso. Ele chama de “hipócritas e ordinários” os políticos que apoiaram a libertação dos sequestradores do empresário Abílio Diniz. Todos, para Sivuca, seriam executados. São inúmeros os casos, ao longo da história mundial, em que a pena de morte foi usada para eliminar opositores políticos. Por um triz ela não privou a humanidade da obra Crime e castigo. Foi escrita em 1866 pelo russo Fiódor M. Dostoiévsky. Dezoito anos antes, ele chegara a entrar na fila, com túnica e capuz, para ser executado em praça pública por subversão, quando o imperador Nicolau comutou a punição por oito anos de trabalho forçado na Sibéria.

O sociólogo Rubem Cezar Fernandes, coordenador do Viva Rio, ONG nascida em 1993 da indignação com as chacinas de Vigário Geral e Candelária, não tem dúvidas de que a ditadura militar eliminaria oficialmente muitos políticos, se a pena de morte tivesse vingado no Brasil. Ex-militante estudantil exilado, Fernandes acha que a perspectiva da morte já está na cabeça do bandido, o que não impede sua decisão de matar. Muito pelo contrário, já que o medo da morte faz com que ele atire primeiro, na polícia ou na vítima que ameaça reagir. “A punição que mais se aplica no Brasil hoje é a pena de morte. Bandido vacilou, morreu, na mão do rival ou da polícia.” O que o criminoso não acredita, segundo ele, é na possibilidade de ser preso. Por isso, o que o País precisa é mexer na polícia e na Justiça para criar a certeza da punição.

Fernandez acha que o ministro José Carlos Dias até está certo na tese de criar penas alternativas, “mas é equivocado abrir esse debate num momento de revolta da sociedade com sequestros e homicídios”. Radicalmente contrário à pena de morte, ele acha que a possibilidade da condenação de um inocente seria alta demais e a cultura da vingança em nada modificaria a criminalidade. “O Estado não tem legitimidade para matar. Ele deveria é proteger os cidadãos. Punir sim, matar não”, diz o sociólogo.


Outro levantamento realizado na cidade do Rio ostenta mais um constrangedor índice de impunidade. Nas varas de execuções penais que concentram 70% das punições da cidade, o jornal O Globo pesquisou o paradeiro dos processos que deveriam existir para punir os assassinos de 1.301 menores de idade mortos desde a chacina da Candelária, em 1983, quando oito deles foram eliminados no ponto mais central da cidade e o País virou notícia nos quatro cantos do mundo. Entre todos os 1.301 homicídios de crianças e adolescentes, apenas 34 assassinos foram a julgamento no período.


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