Uma lacuna importante na história da evolução do homem pode ter sido preenchida. Uma equipe internacional de antropólogos anunciou na revista Science a descoberta do crânio e dos dentes do mais novo membro da família humana, o Australopithecus garhi. Ele viveu na Etiópia há 2,5 milhões de anos e é considerado um descendente direto de Lucy, a famosa fêmea da espécie A. afarensis. Descoberta em 1974, seu nome foi tirado da canção dos Beatles, Lucy in the sky with diamonds. Lucy viveu há 3,5 milhões de anos, já andava sobre as duas pernas e é considerada carinhosamente a tataravó da Humanidade. Se ela é a tataravó, o A. garhi é um seriíssimo candidato ao posto de bisavô, elo de ligação entre os hominídeos como Lucy, seres com características mais símias que humanas, e o gênero Homo, onde a porção homem aparece com mais força. O primeiro dos Homo foi o erectus, há 1,7 milhão de anos. Ele já ostentava a maioria das características da nossa anatomia, a mais marcante das quais é o cérebro volumoso. Também dominava a fabricação de instrumentos de pedra. Bastava apenas um trabalho de lapidação dessas capacidades, que culminou com o surgimento da fala, para o advento do homem moderno, o Homo sapiens, uns 250 mil anos atrás.

"Ninguém previu a existência do garhi", afirma Tim White, da Universidade da Califórnia em Berkeley. A surpresa do especialista se explica. É que acreditava-se que o descendente de Lucy era o A. africanus, hominídeo bípede que habitou o Sul da África entre dois e três milhões de anos atrás. O estudo da evolução por meio de fósseis é como a montagem de um elusivo quebra-cabeças. Procura-se a melhor peça para a lacuna à sua frente. Muitas quase chegam lá, como o A. africanus. Até o momento em que se descobre aquela que se encaixa perfeitamente, caso do A. garhi. Seus restos foram escavados entre 1996 e 1998 numa região desértica próxima à Bouri, distante dois dias de viagem de Adis Abeba, a capital etíope. Ao lado de seus dentes e crânio estavam ossos de braços e pernas de outros indivíduos. Mas os estudiosos não têm condições de afirmar que esses ossos eram do garhi. Tudo o que se pode admitir é que pertenceram a um hominídeo bípede.

O local das escavações fica nas margens de uma antigo lago seco. No passado, deve ter sido um campo de caça e pesca, dada a presença de espinhas de peixe-gato e de ossos de antílope e de cavalo. Nesses últimos, White e seu colega, o etíope Berhane Asfaw, detectaram marcas produzidas por ferramentas de pedra. O melhor exemplo é um fêmur de cavalo, propositalmente fraturado nas duas pontas, para a extração do tutano. Esse acesso a uma dieta rica em gorduras é o mais antigo já registrado. "Constitui uma revolução nutricional que abriu as portas a um mundo alimentar inteiramente novo", explica White. Esse hábito tão combatido pelos vegetarianos, quem diria?, vem de longa data. Estaria aí o início do problema do homem moderno relacionado ao consumo de gordura animal, leiam-se elevados índices de colesterol? Apesar das evidências da primeira carnificina realizada por esses antecessores do homem, os antropólogos quase não acharam as provas do crime. No sítio havia uns poucos artefatos de pedra lascada.

A apresentação do A. garhi ao mundo joga luz sobre uma fase crucial na evolução humana, entre dois e três milhões de anos atrás. "Nossos ancestrais ingressaram nesse período como chimpanzés bípedes. Saíram dele hominídeos dotados de grandes cérebros e comedores de carne", diz White. Agora, só resta descobrir o último grande enigma, o elo perdido, o ancestral comum de homens e macacos que se acredita tenha vivido na África há cerca de sete milhões de anos. O pai de Lucy.


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