Eram seis e dez da tarde de terça-feira 12 quando o apresentador do noticiário mais popular da televisão paquistanesa sumiu da tela e foi substituído por um irritante chiado de estática. Os telespectadores não se deram nem ao trabalho de levantar do sofá para checar se havia algo de errado com a antena. Em quase a metade dos 52 anos de sua história, a República Islâmica do Paquistão foi governada por militares e a conclusão era óbvia: os fardados estavam de volta ao poder. Duas horas mais tarde, as transmissões foram restabelecidas com imagens de tropas marchando, músicas patrióticas e uma mensagem: “O governo de Nawaz Sharif foi destituído. O chefe do Estado-Maior das Forças Armadas vai falar à nação em breve.”

Em seu discurso, o general Pervez Musharraf foi lacônico. “As Forças Armadas estão unidas em torno da decisão de afastar o primeiro-ministro, que foi o último recurso possível para se evitar mais instabilidade no país”. Musharraf não empregou uma única vez a palavra “democracia”. Nem podia. Três dias depois, na madrugada de sexta-feira 15, completou o golpe ao anunciar que era o novo chefe de Estado do Paquistão. Ancorado numa “Lei de Emergência”, suspendeu a Constituição, fechou o Parlamento, prendeu o primeiro-ministro e outros líderes partidários (e congelou suas contas bancárias) e diminuiu ainda mais os poderes do presidente Rafiq Tarar, que já era uma figura quase decorativa.

O golpe, na realidade, surpreendeu pouca gente. A perspectiva de instabilidade política no mais novo integrante do clube de potências nucleares já vinha tirando o sono de figuras graúdas até em Washington. Desde que foi eleito com larga margem de votos em 1997, Sharif vinha acumulando inimigos por todos os lados. Em vez de tentar encarar a séria crise econômica e social do país, Sharif tratou de arranhar a frágil democracia e aumentar o seu poder – mas sem nunca sacrificar os jogos de críquete nos finais de semana em sua terra natal, Lahore. Retirou vários poderes constitucionais do presidente, se livrou do chefe do Supremo Tribunal de Justiça e demitiu o antecessor de Musharraf, o então chefe das Forças Armadas, general Jehangir Karamat, que ousou criticá-lo publicamente.

Seus seguidores lançaram uma investigação anticorrupção contra sua principal oponente, a ex-primeira-ministra Benazir Bhutto, que vive hoje em Londres. “Eu represento uma grande parcela de paquistaneses que acham que Sharif é um fascista que desrespeitou todas as instituições e violou as leis”, vociferou Bhutto. “Não endosso a maneira com que ele foi obrigado a sair do poder, mas não é difícil entender por que isso aconteceu.” No início deste ano, Sharif reprimiu as últimas vozes de dissidência, desta vez na imprensa e até mesmo dentro de seu partido, a Liga Muçulmana. Isso sem falar nas suspeitas de que o primeiro-ministro, em conjunto com seu pai e irmão, construiu uma lucrativa rede de influência. A opulência da propriedade dos Sharif em Lahore e o crescimento vertiginoso de seu conglomerado de indústrias Ittefaq após 1997 vinham alimentando várias acusações de corrupção, que incluem lavagem de dinheiro, evasão fiscal e desvio de dinheiro público.

Sharif também se indispôs com o poderoso establishment militar quando decidiu retirar as tropas de uma faixa do território da Caxemira invadida em maio passado. Para os militares paquistaneses, concessões à eterna inimiga Índia são algo inaceitável, ainda mais se for relacionada à Caxemira, área disputada pelos dois países ao longo dos últimos 50 anos. Ao promoverem a invasão, à revelia do primeiro-ministro, os militares paquistaneses pretendiam colocar areia nas negociações de paz com a Índia.

Pressões – Mas o tiro saiu pela culatra. A comunidade internacional, capitaneada pelos Estados Unidos, temendo que a escaramuça no sul da Ásia se transformasse num conflito nuclear entre os dois países, empregou o seu principal meio de pressão. Ou seja, cortar a ajuda financeira. Acuado por uma dívida externa de US$ 32 bilhões e com o FMI ameaçando suspender o fluxo de empréstimos que mantinham a economia na UTI, Sharif evacuou as tropas da Caxemira. “Não estou disposto a alimentar esse jogo de sangue e fogo que vem consumindo a Índia e o Paquistão desde a nossa independência, em 1947”, disse Sharif em julho passado. A partir daí, a dúvida em relação a um golpe limitar ficou limitada a uma pergunta: Quando?

O Paquistão era e continua sendo um país repleto de problemas sociais, com uma legião de miseráveis. O general Musharraf terá agora a missão mais árdua. Diante das sanções internacionais que certamente virão e as agruras econômicas do país, marchas e tanques são de pouca utilidade. Os EUA, por sua vez, que fortaleceram os militares paquistaneses durante a guerra fria para contrabalançar a Índia pró-soviética, terão agora de intensificar seus esforços para manter a Índia e o Paquistão distantes de suas bombas atômicas.