Para a maioria dos leitores, Estação Carandiru, do médico Drauzio Varella, há quase quatro meses na lista dos mais vendidos do País, descreve uma realidade fantástica, quase um universo paralelo. Fala da vida de homens confinados, de suas regras de sobrevivência e códigos de conduta. Para alguns dos seus leitores mais recentes, contudo, o livro editado pela Companhia das Letras é real até o último ponto. Para eles, expressões como sangue-bom, laranja e maria-louca têm tradução imediata e uso cotidiano. Eles são os personagens do livro, os próprios detentos. Sob a tutela do agente penitenciário Waldemar Gonçalves, 25 exemplares foram distribuídos no presídio paulistano, onde vivem cerca de 7.200 homens. A distribuição exigiu uma estratégia minuciosa e decisões hábeis, para que eventuais filas de espera não se tornassem um foco de conflito. No Carandiru, evitam-se fagulhas.

Um dos volumes caiu nas mãos de Róbson Santana, 21 anos, condenado a seis anos e quatro meses por assalto à mão armada. Além de ter driblado o ócio, que é “a oficina do demônio”, Róbson utilizou a obra como uma espécie de manual de sobrevivência. “Para gente como eu, primária, o livro ensina que a vida aqui é muito diferente do que lá fora. Tem que controlar o sistema nervoso para não ficar louco”, diz o detento. “Eu aprendi a lidar com a malandragem tendo humildade e, principalmente, uma palavra só. No crime, malandro não tem duas palavras, é uma definida.” Os detentos que já leram Estação Carandiru – um número que a estrutura carcerária não tem condições de calcular ainda – reconheceram em suas páginas as regras que organizam seu convívio, não escritas, mas aplicadas com rigor muitas vezes maior do que leis previstas na Constituição Federal. Delatar, não pagar dívida, desrespeitar a visita alheia e cobiçar a mulher do próximo, por exemplo, são crimes inafiançáveis.

Marcelo Silva Gomes, 24 anos, condenado a dois anos por assalto, aprendeu com a leitura a se proteger da Aids. “Ficava só descabelando, no cinco contra um, até o desespero. Aí eu cogitei os afeminados, que são o alívio do detento. Mas depois de ler o livro do doutor, vi que é sem futuro”, explica o rapaz. “Antes eu não tinha noção da Aids, agora fiquei ligeiro no procedimento e sei me prevenir. Antes eu via, agora eu enxergo”, diz o detento.

Medo de massacre – Edmílson de Souza, 31 anos, condenado a 13 anos por sequestro, já estava no Carandiru na data mais famosa do presídio, dois de outubro de 1992, quando o batalhão de choque da PM invadiu a cadeia e, oficialmente, matou 111 presos. Os últimos capítulos do livro relatam o acontecido segundo a versão dos presos. “O livro pegou o fio da meada, mas cada um que estava lá vai dizer o que viu. Para mim, parecia o Vietnã”, diz Edmílson. “Eu carreguei bastante cadáver e tive muita sorte.” O colombiano Antônio Luís Ariza, preso pela primeira vez, condenado por tráfico de cocaína a quatro anos de reclusão, se impressionou com a descrição do massacre. “Tenho medo que isso venha a ocorrer novamente. Lendo o livro percebi que a rebelião poderia ter sido evitada com mais diálogo.” Ele gostaria de mandar um exemplar de Estação Carandiru para sua família, na Colômbia, mas está indeciso. “Tenho medo de assustá-los.”

Antonino Miano, condenado a nove anos por tráfico, também pensou em sua família quando leu o livro. E chorou. “Eu me emocionei pois estou sofrendo o mesmo problema que o seu Chico, faz quase um ano que não vejo meus filhos”, diz. Seu Chico é um personagem do livro, figura respeitada dentro da cadeia e cujos filhos acreditaram durante muitos anos que estava morto. “Lendo, eu senti o que ele sentia. Adorei o livro, passa a realidade nua e crua daqui de dentro”, elogia Antonino, que todo dia escreve seu diário de detento, já com 350 páginas e um glossário de 200 palavras. Entre elas estão laranja (sujeito que assume crime alheio), sangue-bom (detento com atitude discreta e solidária) e maria-louca (a cachaça destilada dentro da cadeia). Será um novo best seller?

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias