Não são oito horas da manhã e o pernambucano Severino João da Silva, 34 anos, chinelo de dedo gasto pelo tempo e bermuda surrada, já está na luta desde que amanheceu o dia, cavucando a terra com uma enxada em uma extensa área da mata que pertence ao Horto Florestal de São Paulo. O terreno onde Severino trabalha fica atrás do Clube Paulistano de Tiro. Lá,um seleto grupo formado por empresários, médicos e profissionais liberais pratica tiro ao prato, modalidade esportiva disputada nos jogos olímpicos, desde que o antigo tiro ao pombo foi aposentado há pelo menos 15 anos. Escavando, varrendo e peneirando a terra, Severino e outros companheiros ganham a vida com a diversão dos bacanas, praticando um inusitado “garimpo urbano”. Eles passam o dia catando o chumbo que se espalha dos cartuchos assim que deflagrados. A munição é expelida a uma distância que varia de 100 até 200 metros. Garçom desempregado há dois anos, Severino mora na favela ao lado do clube e há cinco meses viu no “garimpo” uma oportunidade de levar comida para casa.

O trabalho é duro. Depois de escavar muito, ele tem de peneirar toda a terra até que as bolinhas de chumbo surjam. O produto é vendido a um ferro-velho por R$ 0,45 o quilo. Segundo o administrador do clube, Henry Lowe, são deflagrados 30 mil tiros por mês, em média. Cada cartucho tem 24 gramas de chumbinho. Em 30 dias, os atiradores despejam nas matas do Horto de 750 quilos a uma tonelada do metal. Severino consegue tirar do “garimpo” quase um salário-mínimo por mês, com o qual sustenta a mulher e os dois filhos pequenos. Lá de cima do barranco empunhando sua espingarda, o segundo melhor atirador da modalidade no Brasil, o paulistano Ghassan Eid, ficou feliz ao saber que famílias inteiras conseguem sobreviver com as sobras dos cartuchos usados pelos atletas. “É gratificante saber que da nossa diversão e treino várias pessoas ganham o pão”, afirma.

Aos 63 anos, o aposentado José Valério da Silva, outro trabalhador que garimpa o dia todo atrás de chumbo, pensa como Eid. “Eles se divertem lá em cima e a gente, aqui embaixo, consegue um dinheirinho”, diz. Também morador da favela ao lado do clube, o sonho do aposentado é juntar R$ 300 para voltar para a Paraíba com a mulher e os seis filhos. Por dia, ele consegue catar R$ 3, dinheiro que dá para o jantar de toda a família. “Dei graças a Deus de ter arranjado esse quebradinho porque o cabra não pode deixar os filhos morrer de fome.”


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