Teresina, 40 graus. Em seu gabinete no Palácio de Karnak, o governador Francisco de Assis de Morais Souza (PMDB), o Mão Santa, vive um inferno astral desde que a Polícia Federal e o Ministério Público divulgaram os resultados preliminares da investigação que revelou um mar de lama em um dos Estados mais pobres da federação. E a lama chegou à ante-sala de Mão Santa. Em uma semana, ele foi obrigado a afastar os dois coronéis da Polícia Militar de sua maior confiança: os irmãos Valdílio Falcão, que comandava a PM, e Odival Falcão, que chefiava a Casa Militar. Ambos são suspeitos de fazer parte de uma quadrilha – integrada por policiais, políticos e juízes – responsável por assassinatos, corrupção e cobrança de propinas.

Parte importante do dossiê preparado pela Polícia Federal ainda não foi divulgada. ISTOÉ descobriu que há uma gravação envolvendo o filho do governador, Francisco de Assis Júnior, chefe da Casa Civil do Estado. O teor da fita é mantido em sigilo, assim como a sua relação com as investigações. A filha de Mão Santa, Cassandra de Morais, também é personagem do grampo. Ela, que é advogada do Tribunal de Justiça, é citada numa conversa como intermediária na liberação de verbas do governo para obras. A denúncia ainda não foi confirmada pela polícia. Os grampos telefônicos que a PF instalou em uma dúzia de telefones – são 700 horas de gravações feitas em 350 fitas, totalizando 2.500 conversas grampeadas nos últimos oito meses – revelaram uma estrutura de poder paralela à do Palácio de Karnak. Não existem provas do envolvimento direto do governador, mas é ele o principal alvo dos investigadores. “Tem muito bandido perto do Mão Santa”, apontou a corregedora-geral do Ministério Público Estadual, Rosimar Leite Carneiro.

Para o secretário de Segurança Pública do Piauí, Carlos Lobo, só foi descoberta “a ponta do iceberg”. Cinquenta inquéritos policiais serão desarquivados, entre eles os que investigam homicídios em Teresina tendo como característica a queima dos corpos e os assassinatos de oito prefeitos no interior desde 1989. “É como se no Piauí houvesse um governo paralelo de bandidos”, resumiu a corregedora Rosimar Carneiro. O delegado Airton Franco, encarregado das investigações até a semana passada, concorda com a corregedora. Franco passará os trabalhos para o delegado de Sergipe Joilson Ribeiro Alves. Curiosamente, sai do caso o delegado que mais tem dado dor de cabeça ao governo piauiense. Franco também é o responsável por dez inquéritos que investigam o suposto desvio de R$ 35 milhões de verbas públicas em favor da campanha de reeleição de Mão Santa.

Nesse Estado paralelo, quem assumia o papel de governador era um militar de pijamas: o coronel da PM reformado José Viriato Correia Lima, que está preso em um quartel juntamente com três soldados e um sargento da sua quadrilha. Seu “secretariado”, desmontado pela PF, era formado por policiais civis, como os delegados José Wilson Torres e Pedro Silva, juízes como Orlando Pinheiro, Francisco das Chagas Moreira e Marques Bastos, advogados, empresários e, pelo menos, um promotor, Benigno Filho. Viriato foi pego pelo grampo da PF negociando com o pistoleiro Valois o assassinato do delegado José Wilson. “…e é bom lá na lojona dele, que tem negócio de vender sapato. O cabra pede um para calçar. Aí, taca-lhe fogo no cu e pronto”.

Um dossiê obtido por ISTOÉ, que circula nos principais gabinetes do Piauí desde abril, detalha a atuação do crime organizado no Estado, relacionando os mesmos suspeitos citados no dossiê da PF. O documento acrescenta pelo menos um nome novo ao esquema do coronel Correia Lima: o do presidente do Tribunal de Justiça do Piauí, desembargador Augusto Falcão Lopes. Ele não aparece nas fitas, mas está sendo investigado pela PF. Segundo fontes da polícia, antes de ser exonerado, há um ano e meio, o coronel Correia Lima tinha um destino quase certo: seria o chefe da guarda do TJ. “Nunca matei ninguém. Pensaria duas ou três vezes antes de fazer isso”, reage o desembargador.

A PF já sabe que abaixo da rede de proteção de juízes e policiais funcionavam escritórios clandestinos que vendiam pacotes de prestações de contas falsas, desvio de recursos para prefeituras e negócios com armas. Estariam envolvidas nas falcatruas 78 prefeituras de quatro Estados – Maranhão, Ceará, Pernambuco e o próprio Piauí. Uma delas é a Prefeitura de Parnaíba, terra natal do governador, cujo prefeito Antônio José Morais Souza é sobrinho de Mão Santa. “Falta desvendar melhor o braço político do esquema. Esses prefeitos envolvidos são na verdade cabos eleitorais de vereadores, deputados e senadores”, disse o promotor Afonso Gil Castelo Branco.

Conexão Acre – O crime organizado no Piauí também está sendo relacionado com o bangue-bangue acreano chefiado pelo ex-deputado Hildebrando Pascoal, cassado pela Câmara por suas ligações com o narcotráfico e com o esquadrão da morte no Acre. O inquérito que trata da morte do traficante piauiense José Hugo, em 1996, será reaberto. Suspeito de ter matado o irmão de Hildebrando, Huguinho teria sido “vendido” pelo grupo do coronel Correia Lima para que a gangue do ex-deputado pudesse matá-lo. O preço: R$ 50 mil. Em Brasília, a CPI do Narcotráfico aguarda a chegada de documentos sobre o tráfico no Piauí para entrar no caso. “Estamos certos de que há ramificações da máfia com os assassinatos cometidos no Acre e no Piauí”, disse o presidente da Comissão, deputado Magno Malta (PTB-ES). A CPI já investiga as supostas ligações de Hidelbrando com Alagoas, através do deputado Augusto Farias (PPB), e com o Maranhão pelo deputado estadual José Gerardo (PPB).

Para a PF, o chefe da Casa Militar do governador Mão Santa pode ser o elo entre o crime organizado no Estado e autoridades do Executivo local. O coronel Odival foi gravado encomendando à GM Aviação e Assessoria Aeronáutica R$ 21 mil em notas fiscais frias para apresentar ao Tribunal de Contas do Estado. Odival Falcão disse a ISTOÉ que é um “bode expiatório” da PF. “Estão querendo me usar para atingir o governador”, diz o coronel, que, apesar de afastado desde 7 de outubro, continua despachando e até fazendo reuniões em seu gabinete, no Palácio de Karnak. “Não vou deixar darem um golpe no Piauí”, justifica-se o governador Mão Santa.