Quem sempre teve vontade de percorrer o famoso caminho do evangelizador Santiago de Compostela, na Espanha, em busca de autoconhecimento, não precisa ir tão longe. O Brasil já tem uma versão da experiência mística. Criado há três anos, Os Passos de Anchieta refazem os passeios por cidades do Espírito Santo do padre beatificado em 1980. A aventura também promete os mesmos resultados: a realização espiritual. A caminhada de 100 quilômetros começa em Vitória e termina em Anchieta. Entrou para o calendário turístico do Estado e já atraiu cerca de 2.800 pessoas. Embora o caminho espanhol seja oito vezes mais longo, os andarilhos de Anchieta também ficam cheios de bolhas nos pés e viajam na euforia da endorfina, o neurotransmissor acionado pelo esforço físico que provoca sensações de bem-estar. A rota brasileira é quase toda litorânea e revela a beleza da costa capixaba, tão pouco conhecida.
Além dos objetivos espirituais, O caminho de Anchieta foi planejado para alavancar o turismo na região. E seus criadores não escondem essa intenção. Em 1997, o empresário e andarilho Luca Isoton, 50 anos, voltou de Santiago de Compostela com a cabeça fervilhando. “Os vilarejos do caminho prosperaram por causa do movimento de andarilhos e novos empregos foram criados”, constatou Isoton. O empresário, que se dedica a caminhadas para combater a depressão, encontrou na figura de José de Anchieta (1534-1597) a chave mística que faltava ao projeto.

O padre da Companhia de Jesus nasceu nas Ilhas Canárias e se fixou em 1587 na vila de Rerigtiba – hoje Anchieta. A cada 15 dias, ele se deslocava a pé até Vitória para administrar uma escola de jesuítas, o atual Palácio Anchieta, sede do governo. Caminhava a pé, como o evangelizador Santiago. Uma tuberculose óssea deixou-o corcunda e o impedia de montar a cavalo. Mas seus passos eram tão rápidos que ganhou dos índios o apelido de Abará-bebe (padre voador) e Caraibebe (homem de asas).

Embora milhares de peregrinos sigam os passos do evangelizador Santiago, até hoje não há provas de que seus restos mortais estejam em Compostela. Tampouco o corpo de Anchieta foi sepultado próximo à rota tupiniquim. Ele permaneceu por 12 anos enterrado no palácio que ganhou seu nome. Depois, foi transferido para Salvador, então capital do País. No deslocamento seguinte, para Roma, os restos naufragaram com a caravela que os transportava.

Do ponto de vista do marketing, essa lenda é um mero detalhe. Os santos deixaram marcas profundas por onde passaram. A certeza encoraja os andarilhos a enfrentar a longa distância, a maioria a pé. O percurso pode ser feito também a cavalo, a nado, individualmente ou em grupo. As caminhadas coletivas costumam reunir uma tribo eclética de místicos, religiosos, adeptos do fitness e aventureiros. As largadas em grupo podem ser em ritmo de aeróbica do Senhor, com sessão de alongamento orientada por professores e som pop. Não faltam tipos exóticos, como o capitão Pacheco, veterinário da Polícia Montada de Vitória, que fez o passeio sobre a mula Lembrança. “Daqui do alto, a vista é panorâmica”, brincou. Acompanhada dos pais, Ellisa Manso Paganotto, dez anos, encarou 25 quilômetros sem parar e depois teve de proteger os pés com esparadrapos. “Se não aguento peço carona, mas vou até o fim”, decretava.

Entusiasmo – A cada trecho, os andarilhos carimbam seus “passaportes” para comprovar a passagem pelos locais, como ocorre no Caminho de Santiago. Mas a versão capixaba tem clima de Brasil. Em vários lugares, as filas para o carimbo são intermináveis. Em compensação, a sinalização dos Passos de Anchieta é bem eficiente. Outro charme da rota é o entusiasmo dos moradores da região. Em Parati, distrito de Anchieta, a criançada recebe os visitantes com uma farta mesa de frutas. Há também várias opções de hospedagem e de restaurantes.

Como o Caminho de Santiago, Os Passos de Anchieta percorrem trilhas no meio do mato, estradas de asfalto. Os andarilhos enfrentam chuva, costões e outros obstáculos. O que torna a experiência brasileira mais atraente são as praias – muitas delas desertas. Há ainda uma reserva ecológica repleta de bromélias, cactus e flores selvagens. O comércio de Anchieta só tem o que festejar. Depois da longa travessia, a cervejinha vale como prêmio.“Os andarilhos chegam morrendo de sede”, diz a vendedora Nice Santos. Eles são recebidos com festa na Igreja Nossa Senhora de Assunção, prédio construído em 1597 pelo próprio Anchieta. Com uma mochila enfeitada pelas 80 bandeiras dos lugares que já visitou, o empresário espanhol Patrick Mustafá Sanches, 46 anos, exultava: “Andar assim é a melhor maneira de falar com Deus.”