Só faltava essa. Até o desenho Bambi pode ser prejudicial à saúde das crianças. Muito se falou da influência nefasta dos meios de comunicação sobre o desenvolvimento infantil. Mas os desenhos animados clássicos sempre estiveram acima de qualquer suspeita. Um trabalho divulgado pelo Harvard Center for Risk Analysis, nos Estados Unidos, acaba de turvar a aura de inocência dessas produções. Os pesquisadores Fumie Yokota e Kimberly Thompson analisaram 74 vídeos e concluíram que 49% têm cenas pouco recomendáveis ao público infantil. Foram listadas 125 imagens agressivas; 62 delas resultavam em morte e o tempo médio de duração das cenas é de 9,5 minutos. Os pesquisadores não falam dos efeitos que as imagens podem provocar no público infantil. A mensagem que querem passar é: a classificação “livre”, motivo de tranquilidade para os pais, nem sempre é sinônimo de violência zero.

O trabalho considera a cena em que a mãe do veado Bambi é morta por um caçador, por exemplo,um drama de difícil digestão pelos pequenos. “Ouvir o tiro e os gritos de Bambi chamando pela mãe é impressionante”, ressalta Kimberly. Pior que Bambi, segundo ele, é o festejado Rei Leão. Além de morte, há traição. Scar, tio do filhote Simba, mata o irmão para se apossar do trono e ainda põe a culpa no sobrinho. As reações do simpático elefante orelhudo Dumbo nem sempre são engraçadas. Quando ele usa a tromba para metralhar de amendoins os amigos que o importunam – descreve o estudo – pode passar a mensagem de que é certo reagir a uma gozação com violência. The Quest for Camelot (A espada mágica), inspirada na lenda do rei Arthur, é o campeão de violência: 28 minutos de cenas agressivas. Um dos responsáveis é o dragão com duas cabeças, que luta o tempo inteiro para ter o controle do corpo. Uma delas chega a usar a serra elétrica para se livrar da outra. “Os personagens usam o embate físico para resolver os conflitos. Se a violência é praticada pelo herói, acha-se graça”, avalia Kimberly.

Um trabalho semelhante foi realizado no Brasil pelo Instituto Latino-Americano das Nações Unidas, Ilanud, órgão da ONU dedicado à prevenção da criminalidade, como parte da pesquisa Crime e tevê. Foram analisados desenhos transmitidos em sete canais abertos de tevê e as ações dos personagens classificadas com base em 13 crimes do Código Penal. Contabilizaram-se 1.433 delitos – 56,7% de lesão corporal, 30,3% de homicídios ou tentativa de homicídios, 5,5% de furtos e 4,1% de roubo. “Os desenhos assumem a ética do bateu levou. Não existe a figura da Justiça”, afirma o sociólogo Túlio Kahn, coordenador do Ilanud.

Mas, e o que acham as crianças? No ano passado, o Laboratório de Pesquisas sobre Infância, Imaginário e Comunicação (Lapic), da USP, resolveu ouvir a opinião de 300 delas sobre seus desenhos preferidos – entre eles, Pica-Pau, Pateta e Pernalonga. “Elas não são passivas, sabem diferenciar a realidade da fantasia e usam os desenhos para reelaborar as dificuldades”, constata o pesquisador Claudemir Viana. O estudo revela que os desenhos agradam pela estrutura simples e repetitiva. O Pica-Pau, por exemplo, é o personagem frágil que, pela esperteza, se dá bem no final. “Há uma identificação que ajuda a criança a vencer o conflito que sofre pela dominação do adulto”, explica Viana.

Repetição – A maioria dos desenhos é baseada em mitos e lendas repetidos oralmente por várias gerações. Sempre falaram das angústias humanas e, pelo que se sabe, nunca chegaram a criar um exército de desajustados sociais. A questão, segundo os especialistas, é que agora existem o vídeo, a câmera lenta, o close. A imagem concretiza o abstrato. E basta um clique no botão para que as crianças vejam a cena predileta quantas vezes quiserem. E quase sempre sozinhas. “Faz falta o narrador, a quem a criança podia interromper e questionar”, explica o psicólogo Yves De La Taille, do Instituto de Psicologia da USP. Em sua opinião, os pequenos precisam de pistas para refletir e nem sempre elas são claras nos desenhos. É fácil entender que a madrasta da Branca de Neve manda matá-la por inveja e que o Capitão Gancho luta com Peter Pan pela conquista da Terra do Nunca. O que não faz sentido é o pirata bater gratuitamente em seu ajudante. “A história deve levar a criança a pensar sobre o bem, o mal e os sentimentos em geral”, observa La Taille.

O que elas vivem na vida real, o que aprendem com a família e a escola são ainda mais importantes. É mais fácil a criança incorporar uma cena violenta do desenho se a agressividade fizer parte de seu dia-a-dia. Por isso, Kimberly chega a sugerir que os pais assistam ao desenhos antes e com os seus filhos – mesmo que isso pareça uma tortura. “Devem explorar juntos soluções alternativas para os conflitos dos personagens”, orienta. Ao final, cabe aos pais o papel principal neste filme.