Ao longo de praticamente todo o século XX, a alma russa, melancólica, rica e intimista por natureza, se viu tolhida pelas rígidas exigências de um realismo socialista que, em nome da ideologia, relegou ao plano dos supérfluos condenáveis os devaneios da fantasia de alguns. Curiosamente, foi entre as esquerdas do resto do mundo e, em especial, a partir de autores como o colombiano Gabriel García Márquez que o realismo fantástico floresceu com mais força. Esse universo paralelo, que, criando-se absurdo, conseguia escancarar as mais proibidas versões em meio às censuras e à repressão das ditaduras de direita, foi a válvula de escape para o resto do mundo, mas não para os então soviéticos. O escritor Nikolai Dejnióv, com seu livro Em ritmo de concerto (Objetiva, 334 págs, R$ 34), recupera todo o colorido que o povo russo guardou, ao longo de décadas, dos olhares cinzentos dos membros do Comitê Central.

Hoje, a sociedade russa é a da barbárie, jogada abruptamente em uma realidade para a qual ninguém foi preparado. Esse confronto atual é o pano de fundo do livro de Dejnióv, uma história de amor que mistura anjos, duendes e fantasmas do rico folclore russo às paredes cinzentas dos decadentes prédios de Moscou, seus problemas e carências.

O mundo de hoje, retratado com fina ironia pelo autor, é o universo absurdo no qual os valores se inverteram a ponto de os ditos normais disputarem o espaço dos hospícios. É o tempo em que os anjos atravessam as paredes da tumba de Lenin para conversar com o corpo mumificado do grande líder dos bolcheviques, e dele arrancam lágrimas para espanto dos guardas do mausoléu. Um momento de definições em que as pessoas precisam se obrigar, a toque de caixa, a enfrentar sentimentos que foram sempre orientados a sublimar. E, principalmente, para quem está de fora, uma oportunidade imperdível de acompanhar de perto um precioso momento da história da sociedade contemporânea.