CONFRONTO Em nove horas de fórum, várias quedas-de-braço como a que envolveu o governador baiano (ao lado)

Foi mais quente que pimenta baiana. Um sururu daqueles. Imagine a cena: no terreiro de Comandatuba, aquele pedaço de ilha banhado de beleza por todos os lados e abençoado pelos babalorixás, deu-se uma briga das grandes. Rinha ideológica, registre-se, mas acalorada e depois rica de soluções. De um lado, políticos de várias siglas e vertentes – dez governadores, dois ministros de Estado e uma penca de senadores, deputados, parlamentares à esquerda e à direita, ao gosto do eleitor. Do outro, empresários e CEOs na escala mais alta da cadeia industrial e de serviços, que desembarcaram ali a bordo de 25 jatinhos e quatro Boeings inteiramente lotados. Só faltou irem às vias de fato, mas o bate-boca subiu todos os decibéis. Diria o pai-de-santo que o ambiente estava carregado. Corria a tarde de sábado 19, o sol baiano queimava a pele de acompanhantes à beira da piscina e os participantes do 7º Fórum Empresarial, organizado por João Doria Jr., retornavam após o almoço para a segunda jornada de debates. O governador Jaques Wagner entrou gloriosamente no salão de convenções, como anfitrião estadual, para dali a pouco protagonizar o inusitado. Barba farta e prateada, a combinar com a cabeleira arrumada em topete, mirada superior de varão nordestino, Jaques Wagner parecia acometido por uma vertigem de reverência, como a se sentir o coronel dono do pedaço. Respondia a uma provocação do empresário de milhões, Manoel Amorim, presidente do Ponto Frio. Manoel havia começado: “Com autoridade moral de quem tem de trabalhar até o fim do mês que vem apenas para pagar os tributos do ano, lamento que ainda tenhamos que fazer doações para a educação de qualidade de nossas crianças.” E disse mais: “No setor privado, usar o próprio produto é sinônimo de respeito ao consumidor e de confiança na qualidade do que se faz. Sugiro que, como meta para se alcançar uma educação de qualidade, todo político mantenha seus filhos e netos em escolas públicas.” Aplausos efusivos.

Foi o suficiente para destampar a panela quente. O governador Jaques Wagner, dedo em riste e veias saltadas da garganta, partiu para o ataque: “Não admito, eu não admito, e sei que falo aqui em nome dos vários partidos presentes, que o senhor venha imputar unicamente à classe política toda a responsabilidade pelas mazelas do País. Me sinto provocado a falar… assim vocês não contribuem em nada para chegar ao Brasil que querem. Todos somos culpados pelo modelo que existe há 508 anos. A elite empresarial também tem uma responsabilidade histórica.” E, dirigindo-se diretamente a Manoel Amorim, fulminou: “Seu discurso é um convite à inexistência da política.” O empresário retrucou. Disse que tratou de vários itens em sua exposição e que lamentava ter sido mal interpretado na declaração. O governador paraibano, Cássio Cunha Lima, não deixou barato e assumiu a tréplica: “o senhor não foi mal interpretado, foi grosseiro mesmo, grosseiro!” Na platéia, um participante definiu como “chilique sindical” os arroubos de Jaques Wagner. Zunzunzum daqui, panos quenmotes dali, veio o governador de Sergipe, Marcelo Deda, para empunhar a honra da classe: “Eu sou, com muito orgulho, um político brasileiro.” Dito isso, pôs-se a contemporizar. “Há diferenças na gestão pública e privada e o transplante puro e simples de método não é o caso. Se o tempo do gestor público for confundido com o tempo do gestor empresarial, não há avanços.”

O ambiente na sala de convenções naquele dia já tinha passado por momentos bem mais constrangedores. Os empresários participantes, entre inquietos e perplexos, tinham ouvido pela manhã uma derrapagem verbal do presidente do Congresso, Garibaldi Alves, na qual não queriam acreditar. Viviane Senna, a empresária que projetou um dos mais bem-sucedidos trabalhos de educação do País, atuando nos Estados de Pernambuco, Paraíba e diversos outros, com programas de alfabetização que já atingiram mais de cinco milhões de alunos, fazia sua apresentação e ponderou que a questão fundamental não era apenas quanto investir na educação nem o tempo que esses alunos passam na escola, mas como investir. “Todos nós estamos de acordo que a questão não é só de recursos e que, mais do que tempo de permanência na escola, o importante é que elas (as crianças) estejam estudando. Do contrário, podemos estar transformando nossas escolas em meros estacionamentos de crianças.” Veio então o senador Garibaldi Alves tentar agradar com uma analogia histórica: “Devemos ouvir a Viviane Senna porque ela é a Joana d’Arc da educação brasileira.” Viviane agradeceu, pedindo que a comparação com Joana d’Arc se referisse apenas ao começo da vida da heroína, e não ao seu fim (quando foi queimada na fogueira, acusada de bruxaria). A emenda do senador foi um desastre. “Viviane, você não corre o menor risco, seu irmão já teve um destino parecido, você não.” Ele disse isso? Pareciam se perguntar todos. Disse. Silêncio geral. Um participante comentou ao lado: “Esse cara é maluco!” Garibaldi tentou contornar com um pedido de desculpas mais adiante. Viviane, na habitual elegância, relevou a indelicadeza sem registro.

“Eu não admito que o senhor venha imputar unicamente à classe política toda a responsabilidade pelas mazelas do País”
Governador Jaques Wagner

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No ponto em que estavam as polêmicas em série, o ministro da Educação, Fernando Haddad, também achou por bem incluir a sua. Falou de uma proposta que acalenta de rever o “Sistema S”, aquele que engloba o Sesi, Senac, Sebrae – e que forma perto de 60 mil alunos por ano. Diz Haddad que com apenas R$ 5 bilhões dos R$ 8,2 bilhões que o “S” recebe do contribuinte para a formação técnica daria para atender dois milhões de estudantes da escola pública do ensino médio. Era um tiro direto nos projetos sob o amparo de entidades empresariais privadas, como as Fiesp da vida. E não era só essa alfinetada que os políticos reservavam aos empresários. O presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia, pensou em algo mais ousado. Ele sugeriu que se discuta no âmbito da reforma tributária a instituição de uma taxa de 5% sobre a folha de pagamento de funcionários para o financiamento à educação. Jorge Gerdau Johannpeter deu a resposta: “A oneração da folha de pagamento é um erro. Temos um custo total de 40% de impostos na folha, uma estrutura medieval. Nenhum país que tenta vender mais lá fora importa impostos.”


No jantar, após o embate, o governador Jaques Wagner e o empresário Amorim não foram vistos

Durante as discussões e exposições todos admitiam que alguma coisa teria de ser feita para sanear o problema da educação no País. Doria, buscando o tom da conciliação, falou que essa era uma questão suprapartidária. A pergunta fundamental: existiriam duas correntes possíveis, dois caminhos distintos, o político e o empresarial, com resultados comuns? A impressão geral é que, embora sempre tenha havido a luta de classes de empresários e políticos – e que ali assumiu uma magnitude maior dada a força do tema –, as ações conjuntas trariam soluções. Algumas delas: a tentativa de medir a performance das crianças nas escolas públicas e de se estabelecer metas de alfabetização. Chinaglia propôs a criação de uma Lei de Responsabilidade Educacional e Garibaldi falou em CPI da educação para aprofundar o debate. Investimento? Dali saíram, em pouco mais de dez minutos de lances espontâneos de doação, uma arrecadação de quase R$ 6 milhões para os programas educacionais do Instituto Ayrton Senna. A primeira- dama de São Paulo, Mônica Serra, também fez uma arrecadação recorde para a sua campanha do agasalho: perto de 200 mil cobertores só ali, número maior que o conseguido durante todo o ano passado.

Talvez devido ao ineditismo de se reunir tamanha força-tarefa em um só lugar para uma mesma questão, num seminário que se estendeu por quase todo o dia, o saldo foi bem produtivo. Do ministro da Educação ao presidente do Congresso, passando por especialistas diversos e a presença maciça do capital, todos contribuíram para soluções concretas. O governador do Piauí, Wellington Dias, clamou por atenção. “Com 222 municípios, o Piauí, há nove anos, só tinha ensino médio em 35 municípios. Está melhor, mas precisa de ajuda. Foi por falta de educação que perdemos a corrida com os outros Estados.” O de Alagoas, Teotônio Vilela Filho, pediu socorro ao ministro: “Detemos a triste marca de possuir o maior número de analfabetos do País, 46% da população.” Depois, em mais uma inspiração metafórica – a turma política estava afiada no dia –, declarou- se a Viviane Senna: “Vivi, eu já te amava antes, mas era um amor platônico. Quando chegar em Alagoas e anunciar o acordo com o instituto, esse amor será real.” E, para não ficar de fora, Waldez Góis, governador do Amapá, saiuse com uma ode marqueteira: “Eu não moro no fim do Brasil, como alguns pensam. Ali começa o Brasil. É o meio do mundo, esquina com o rio Amazonas. Olhem por nós.” Nove horas de intenso embate depois, os presentes selaram a paz com um jantar. Por algum motivo, nem o governador baiano, Jaques Wagner, nem o empresário Manoel Amorim foram vistos por lá.

 


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