O fisiologista Turibio Leite condena a especialização de crianças em práticas esportivas e diz que as disputas, até os 12 anos, devem educar e divertir

Direcionar os filhos cada vez mais cedo para uma única atividade esportiva é um erro grave, que pode comprometer o desenvolvimento e a educação dos pequenos. Até a puberdade, a criança deve ter garantido o direito de praticar livremente todos os esportes que desejar, em busca de divertimento e aprendizado. Os pais precisam se esforçar para que os filhos tirem as melhores lições das disputas. Teses como essas, defendidas há anos pelo professor Turibio Leite Barros Neto, coordenador do Centro de Medicina da Atividade Física e do Esporte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), voltaram a ser discutidas recentemente no Brasil. As idéias de Turíbio Leite, que também é fisiologista do departamento de futebol do São Paulo, retomaram força com a publicação de um comunicado em que a Academia Americana de Pediatria condena os pais que obrigam menores de 12 anos a realizar uma só modalidade esportiva. Muitas vezes, a limitação vem acompanhada de uma atividade física exagerada, com o objetivo de formar atletas de ponta que possam render dividendos num futuro próximo. Nesta entrevista a ISTOÉ, Turibio Leite mostra os riscos dessa especialização precoce.

ISTOÉ – Como o sr. avalia o comunicado da Academia Americana de Pediatria?
Turibio Leite Neto

Os profissionais foram muito felizes ao condenar a especialização precoce no esporte, isto é, a decisão, muitas vezes insana, de lutar para transformar crianças, da noite para o dia, em campeões que geram lucro. O comunicado repete um alerta que tenho feito nesses últimos anos. Todo pai acha o filho um craque, o máximo. O “meu menino” ou “a minha menina” é a criança que corre mais rápido, joga melhor, salta mais alto, dança com mais técnica e emoção. É também a mais bonita, a mais inteligente – e, se alguém não concorda com tudo isso, o melhor a fazer é mudar de assunto para evitar brigas. Pais são assim. Aqui mesmo, entre as pessoas que são atendidas pela equipe do Cemafe, esse é o discurso típico em quase todos os casos. O problema é que esse excesso de confiança, não raro, gera atitudes desequilibradas.

ISTOÉ – Por que isso ocorre?
Turibio Leite Neto

Os pais são vaidosos e, muitas vezes, querem se realizar através dos filhos. Mas existe, também, um outro fator importante, cada vez mais comum. Como o esporte movimenta centenas de bilhões de dólares no mundo e é capaz de transformar pessoas humildes em milionários num estalar de dedos, muitos pais sobrecarregam crianças de 11, dez, oito, até sete anos, em busca de fama e dinheiro rápidos. Vislumbram um atalho para a salvação financeira da família e submetem os pequenos a rotinas extenuantes de treinamento, num esquema quase profissional. Essa neurose de correr para transformar a criança em atleta de ponta é uma atitude cruel – em alguns casos, quase criminosa. Mas, infelizmente, essa tem sido a realidade de milhares, talvez milhões de crianças em todo o mundo. Por isso, a Academia Americana de Pediatria decidiu condenar o direcionamento precoce às práticas esportivas, uma atitude apoiada por muitos pediatras, fisiologistas e educadores físicos. Os bons especialistas defendem que, até o início da puberdade – na faixa dos 12 anos –, o esporte deve funcionar como elemento de diversão para meninos e meninas. As disputas, nesta fase, devem ser regidas por códigos estabelecidos pelas próprias crianças. O profissionalismo e o direcionamento excessivo dos adultos devem ser evitados a todo custo.

ISTOÉ – As competições, nesta fase, devem ser encaradas de que forma?
Turibio Leite Neto

A cobrança exagerada produz uma dupla frustração, mesmo quando todos estão certos de que o filho é talentoso e ama o esporte que pratica. A criança é uma vencedora. Mesmo assim, no dia em que perde para o amigo, fica arrasada. O pensamento é o seguinte: “Eu não presto para nada. Bom é o fulano, que deixou o pai dele feliz. Olha lá, como o pai dele está rindo.” Ela se culpa pela derrota e também por imaginar que o pai e a mãe estão tristes. Submeter uma criança a esse tipo de sofrimento é tudo o que não se deve fazer.

ISTOÉ – Como se deve agir nessas situações?
Turibio Leite Neto

O certo é rememorar as conquistas anteriores e destacar que, na vida, não se ganha tudo a todo momento. O problema é que pais que tentam, a todo custo, se realizar através dos resultados esportivos da criança dificilmente conseguem agir com a tranquilidade exigida pela situação. Meses atrás, vi uma ginasta brasileira de uns 11, 12 anos, chorando copiosamente na tevê por não ter atingido um índice qualquer. Esta foi uma das cenas mais constrangedoras que vi o esporte produzir em toda a minha vida. Tenho seis filhos. Os mais novos são duas meninas, de dez e 14 anos. Vou correr o risco de ser considerado preconceituoso, mas não vou deixar de dar minha opinião. Ginástica olímpica é fascinante, mas, sinceramente, não gostaria de ver minhas filhas envolvidas nesta prática esportiva altamente desgastante. Se a criança chega e diz: “Mãe, a única coisa que eu quero é ginástica esportiva”, talvez seja o caso de atender ao pedido. Do contrário, o melhor é não estimular.

ISTOÉ – Qual é a verdadeira função da atividade esportiva?
Turibio Leite Neto

Poucas coisas podem ser tão úteis na formação de um indivíduo quanto o esporte, que diverte e educa ao mesmo tempo. As crianças, quando estão livres, em grupo, sem a sensação de serem observadas pelos adultos, experimentam vários tipos de atividades esportivas no mesmo dia. Começam jogando bola, depois tentam descobrir quem arremessa algo mais longe, passam a disputar saltos e terminam apostando corrida. Por que isso? Porque, no início da vida, elas procuram o esporte para se divertir. No campinho do terreno baldio, as normas visavam o divertimento, as disputas eram harmônicas e, normalmente, o perdedor tirava uma lição de vida. Aquilo fazia parte do amadurecimento da criança. Essa realidade produzia uma coisa muito importante, que é a seleção natural: o garoto bom num determinado esporte era eleito pelos próprios colegas. E quanto menos o adulto influenciava nessas escolhas, mais autênticas elas eram. Todo sujeito com mais de 30 anos que gosta de futebol, por exemplo, sabe até hoje quem era o craque da rua no seu tempo. Hoje, nas grandes cidades, as crianças nem sequer têm turma na rua. Quando podem, brincam nos condomínios. O restante do tempo é dedicado aos games e ao computador. Esses elementos da vida moderna têm, evidentemente, o seu lado positivo. Mas o fato é que, atualmente, quase não existem mais as oportunidades para a realização de atividades espontâneas em grupo, com normas e critérios estabelecidos pela própria turma. Isso é triste.

ISTOÉ – O sr. quer dizer, então, que uma das chaves do sucesso é respeitar o gosto dos filhos…
Turibio Leite Neto

Exatamente. Ouço muita gente dizer: “Vou colocar minha menina para nadar porque natação é o esporte mais completo, o melhor para a saúde.” Natação pode ser uma ótima atividade, desde que a criança goste de nadar e não se aborreça de ficar contando ladrilho no fundo da piscina. Natação é excelente para o físico, mas é também um exercício muito puxado. Se não houver prazer, a criança vai se sentir como alguém que faz um tratamento de saúde sem estar doente. Vamos ser sinceros: o início das atividades de um programa rigoroso de natação não é divertido. As crianças que abandonam essas academias com 30, 40 dias de treinamento parecem concordar comigo. Agora, com o Guga, estamos vivendo a onda do tênis. Quem ainda não ouviu um amigo dizer que vai colocar o moleque para aprender tênis? É preciso calma. A escolha da atividade esportiva correta deve ser um processo.

ISTOÉ – Mas a busca de grandes talentos é uma realidade no esporte internacional…
Turibio Leite Neto

É verdade. E esses fora de série precisam ser incentivados, desde que sintam prazer em levar a coisa adiante. Essa busca é importante e o País precisa dela. Mas é necessário conhecer bem as crianças antes de criar uma carga pesada de trabalho físico. A competição profissional é extremamente seletiva. Uma das coisas que deixam os pediatras americanos espantados é a quantidade de crianças que desperdiçam um precioso tempo na infância, deixando de lado outras atividades que poderiam desenvolver com capacidade, alegria e chance de sucesso. Em muitos casos em que o regime de treinamento é espartano, nem mesmo o ganho de saúde é verificado. Muitas vezes, o estado físico geral da criança é comprometido por excesso de treinamento.

ISTOÉ – Como descobrir o atleta excepcional sem forçar a criança?
Turibio Leite Neto

O imponderável vai sempre existir nesses casos. Isso, de uma certa forma, ajuda a construir a beleza do esporte. Mas os especialistas em atividades esportivas podem ajudar muito a descobrir o que nós chamamos de gesto esportivo. Hoje, em qualquer modalidade, não adianta ter apenas talento. A técnica precisa de contrapartida em termos físicos. Os cientistas acreditam que, antes da maturação sexual, genericamente, a criança não apresenta uma especialização esportiva. Exibe apenas um potencial – o que não significa que, nesta fase, ela não possa se iniciar em determinado esporte. Se esta, digamos, especialização do corpo para a prática esportiva só ocorre depois da puberdade, teoricamente, não se pode garantir, antes da maturação sexual, que a criança será campeã nos esportes que dependem desta sinalização da natureza. Mas é possível detectar, tecnicamente, alguns direcionamentos neuromotores na molecada, o talento do ponto de vista do gesto esportivo.
 

ISTOÉ – O que é gesto esportivo?
Turibio Leite Neto

É a capacidade natural que a criança apresenta para realizar movimentos relacionados a determinados tipos de esporte. Em um mesmo grupo de crianças, o craque do futebol pode, na prova de natação, chegar vários metros atrás do perna-de-pau. Os dois poderão perder de outro menino no tênis de mesa. Por fim, os três podem ser derrotados na partida de basquete, no final da tarde. O que os testes dos especialistas fazem é identificar, com maior precisão, essas diferenças que qualquer um nota, de forma simplificada, ao fazer uma experiência como esta.

ISTOÉ – O sr. poderia dar um exemplo?
Turibio Leite Neto

Veja o caso do Gustavo Küerten, o Guga. Esse rapaz ama futebol, adora surfar, praticou os dois esportes na infância, mas acabou se tornando um atleta de ponta no tênis. Conseguiu unir perseverança e um conjunto de capacidades físicas especiais. Além do corpo longilíneo, Guga mostra uma capacidade impressionante de assimilar os movimentos específicos do jogo. Sua facilidade para flexionar o corpo em busca da bola também é algo raro de se encontrar. Volto a dizer que é impossível prever com absoluta precisão o futuro esportivo de uma criança. Mas um profissional da área esportiva bem preparado pode identificar o conjunto de aptidões de uma criança e, pelo menos, sugerir um caminho. Acho até que, num futuro não muito distante, as informações biogenéticas fornecidas pelo projeto Genoma poderão dar alguma contribuição neste campo.

ISTOÉ – E quando não se pode recorrer a um especialista?
Turibio Leite Neto

O ideal é levar a criança para conhecer e experimentar várias práticas esportivas. Esse é um dos mandamentos do meu trabalho. Leve os filhos ao jogo de basquete, coloque-os para nadar na piscina do clube, discuta o jogo do time de futebol predileto, a disputa de judô, visite o centro esportivo municipal. Mostre o maior número possível de atividades esportivas, contribua para que seu filho acumule informações necessárias para a decisão e só então coloque-o diante da perspectiva da escolha. Isso dá trabalho. Mas filhos dão trabalho – e o esporte ainda é um dos melhores instrumentos para ajudar a educá-los. O gosto da criança precisa ser o ponto de partida. De nada adianta ter potencial para ser Ronaldinho ou Guga quando o que se quer mesmo é, por exemplo, tocar violão.

ISTOÉ – Por falar em grandes atletas, quais as expectativas do sr. para as Olimpíadas de Sydney?
Turibio Leite Neto

Nós certamente veremos a quebra de muitos recordes. O que me tira o ânimo é saber que uma grande parte dos resultados obtidos atualmente pelos atletas olímpicos é fruto da ação do doping. As técnicas para driblar os exames se sofisticaram muito nos últimos anos, o que impediu a identificação de marcas excepcionais, obtidas com a ajuda de substâncias proibidas. Muitos dos atuais recordes registrados no atletismo vieram com as drogas. Há quem defenda a anulação de vários recordes para que tudo recomece do zero. Mas isso não seria a solução. Afinal, se um atleta dopado não for identificado, nada pode impedir que ele volte às disputas e bata novos recordes falsos. Não é uma situação fácil de resolver. Mas as boas lições do esporte acabam compensando esse lado negativo.