A expressão "friendly fire", no jargão militar americano, significa ao pé da letra "fogo amigo", ou os disparos partidos de suas próprias fileiras. Na semana passada a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) levou o termo ao auge do paroxismo. Na segunda-feira 12, dois mísseis direcionados a uma ponte sobre o rio Juzma Morava acabaram atingindo inadvertidamente um trem que passava sem ser notado pelo piloto. Dez pessoas que viajavam de Belgrado a Skopje naquela composição de número 393 morreram e outras 16 ficaram gravemente feridas. Dois dias depois, um caça F-16 bombardeou um comboio que imaginou ser de veículos militares na região de Djakovica, no Kosovo. O alvo, visto mais de perto, era uma fileira de quatro tratores puxando carretas cheias de refugiados kosovares albaneses. O número de mortos varia entre 64 e 72, dependendo de quem faz as contas, os ocidentais ficando com o saldo mais baixo. Qualquer que seja o resultado verdadeiro, ficava claro depois dos episódios que o presidente iugoslavo Slobodan Milosevic conseguira mais uma importante vitória no campo das relações públicas, onde vem se demonstrando imbatível. Além disso, o encouraçado de países aliados da Otan, capitaneados pelo americano Bill Clinton, começa a fazer água, e existem no ar ameaças de motim.

As imagens hediondas de civis desmembrados, chamuscados e atirados numa estrada em terra arrasada causaram mais danos às forças aliadas do que o temido sistema de defesa antiaéreo sérvio. Em primeiro lugar, jogaram por terra o conceito de "bombardeio cirúrgico" e infalibilidade da pontaria movida a satélite e laser dos aviões da Otan. Além disso, deu combustível aos países que não acreditam que o bombardeio contínuo seja a saída para um imbróglio tipicamente balcânico em suas complicações. Logo depois do "fogo amigo" no trem sobre o rio Juzma Morava, os europeus começaram a falar em parar a briga. Representantes da União Européia, reunidos na Alemanha, endossaram um plano de paz alemão, onde se prevê o cessar-fogo, seguido de negociações para a volta de refugiados ao Kosovo. Eles seriam protegidos por uma força internacional que teria inclusive a presença dos russos, aliados naturais dos eslavos sérvios.

"O público estava acostumado às imagens limpas da guerra do Golfo", disse a ISTOÉ na semana passada o analista militar Thomas Kindberg, da revista Soldier of Fortune. "Mas aqueles foram bombardeios no deserto, com alvos claramente delineados e sem civis por perto", disse Kindberg. Sabe-se agora também que as supostas maravilhas tecnológicas da aviação ocidental não são de grande valia quando o tempo está nublado. A maioria dos aviões saídos das bases na Itália volta carregado de bombas, sem conseguir despejá-las por causa do característico clima carregado dos Bálcãs.

 

Poucos alvos Vários analistas militares americanos também apontam que o número de alvos sérvios atingidos é muito minguado em relação ao assombroso número de missões realizadas pelas forças aéreas aliadas. Na quinta-feira 15, os porta-vozes da Otan diziam terem sido atingidos 168 alvos. Isso depois de milhares de missões de bombardeios. Foram realizadas em menos de um mês quase o equivalente de missões executadas nos 100 dias de guerra no Golfo. "É muito estranho que milhares de ações resultaram apenas em danos a menos de duas centenas de alvos. Além disso, nos relatos aliados é usada com muita frequência a expressão ‘danos moderados’ para descrever o sucesso de ataques a alvos sérvios. O que significa ‘danos moderados’? Até uma marreta é capaz de causar danos moderados", dispara Kindberg.

A eficiência da força aérea aliada é questionada em outros flancos. Por exemplo: os jatos F-16 que participaram do ataque ao comboio de refugiados em Djakovica não são considerados ideais para este tipo de operação contra forças terrestres. O aparelho voa a uma altitude de 15 mil pés (4,5 mil metros), para escapar das baterias antiaéreas inimigas. Assim, trafegando tão alto, o reconhecimento de alvos fica prejudicado. O próprio piloto em depoimento gravado e divulgado pela Otan, disse que voou duas vezes sobre a fileira de veículos. Em ambas as ocasiões ele pensou ter reconhecido, a olho nu, transportes militares. Também fez a confirmação do alvo nos sensores termo-elétricos do avião. Depois disso, disparou e saiu da área por causa de problemas de baixo combustível de seu parceiro de missão. Poucos minutos depois, outros dois F-16 viriam completar o serviço, disparando novamente no que sobrou. Todos confundiram tratores vermelhos puxando carretas com caminhões militares verdes.

Mesmo assim, a força aérea aliada ganhará um reforço com a chegada, nas próximas semanas, de mais 300 aeronaves americanas. Também serão convocados 33 mil reservistas. Tudo isso será insuficiente caso o presidente vá perseguir as metas que delineou na quinta-feira, na American Society of Newspaper Editors em São Francisco. "Será preciso uma transição democrática na Sérvia, ou as democracias na região jamais estarão seguras com uma tirania em seu meio." Ou seja: o alvo é a derrubada do regime de Milosevic. Para isso, cresce o conceito de que será imprescindível o envolvimento de tropas terrestres, com custos que podem ser insuportáveis aos bolsos e corações americanos.