Que o PMDB do Rio de Janeiro sempre esteve para os cargos públicos como o marisco está para o rochedo, é notório. Foi governo com Chagas Freitas de 1979 a 1983, integrou a primeira gestão de Leonel Brizola (83-87), elegeu Moreira Franco em 1986 e, depois de um intervalo infiltrado no PDT do segundo governo Brizola (91-94), apoiou Marcello Alencar (95-98). Embalado agora pela filiação do ex-tucano Sérgio Cabral Filho, campeão nacional de votos em 1998 e presidente da Assembléia Legislativa, o partido de Moreira Franco cresceu tanto que tudo levava a crer que manteria a tradição e tomaria de assalto o governo Anthony Garotinho (PDT). A sede com que foi ao pote desta vez, porém, extrapolou tanto os limites do razoável que a legenda pode acabar amargando uns tempos na oposição.

A última reunião entre o governador e os dois comandantes do PMDB na Assembléia, Sérgio Cabral e o primeiro-secretário da Casa, Jorge Picciani, para tratar da composição do governo por pouco não termina em pancadaria. O encontro ocorreu no dia 31 de março no edifício conhecido como Banerjão, no Centro do Rio, onde Garotinho despachava. O relato da conversa é de um participante e foi confirmado por dois confidentes das autoridades presentes. O bate-boca só terminou quando Garotinho expulsou os deputados de seu gabinete.

De acordo com os relatos, os deputados chegaram dizendo que estavam ali para cobrar espaço. Na versão do Palácio Guanabara, no início do ano foi feito um acordo que daria ao PMDB o comando do Detro, órgão da Secretaria de Transportes que fiscaliza as linhas de ônibus, uma cadeira estratégica para a poderosa federação dos empresários de ônibus, a Fetranspor, dona de um dos lobbies mais eficientes do Legislativo fluminense.

Os deputados disseram a Garotinho que, ao passar de nove para 20 parlamentares, o PMDB não poderia se contentar só com uma vaga no segundo escalão. Queria também a Secretaria de Transportes do petista Raul de Bonis, indicado pelo deputado Carlos Santana (PT–RJ). Com a negativa, iniciou-se a discussão. Num determinado momento, Picciani, de pé e gesticulando muito, disse que não estava acostumado a tratar com moleque e que as conversas com Garotinho deveriam ser gravadas.

– Você não está falando com um vendedor de cachorro-quente, sou o governador – reagiu Garotinho.

O governador, seu secretário de Gabinete Civil, Jonas Lopes, e o presidente da Assembléia continuavam sentados. Cabral pedia calma a Picciani, fazendo, em vão, apelos pelo entendimento. Diante da recusa de Garotinho, Picciani chamou Cabral:

– A gente sabe como resolver isso, Sérgio, vamos embora.

– Façam como quiserem. Só quero deixar claro que não farão comigo o que fizeram com Marcello Alencar. Não quero áreas cinzentas no governo – rebateu Garotinho. Foi quando Picciani, segundo os três relatos, extrapolou:

– Se você não der agora, vai ter de dar depois. Se a gente pedir para baixar as calças, vai ter de baixar as calças e sentar no nosso colo –disse o deputado. Garotinho então se levantou, abrindo a porta do gabinete:

– Doutor Jonas, faça o favor de acompanhar esses senhores até a saída dos fundos. Se achar necessário, chame os seguranças. Foram as últimas palavras do governador, que saiu da sala. Em público, Garotinho nega o diálogo, mas admite que a reunião foi "muito áspera".

– Fiquei muito chateado com o deputado Picciani – diz.

Ele se prepara para os maus-tratos que deverá receber de um PMDB fortalecido no comando da Assembléia. Em Campos, cidade que o elegeu duas vezes prefeito, Garotinho costumava enfrentar os vereadores chamando o povo para cercar a Câmara. Ele conta que, certa vez, ameaçado de impeachment por se recusar a aumentar os salários, chegou a juntar dez mil pessoas em volta do prédio. Perguntado se mandaria a multidão cercar o Palácio Tiradentes, no centro da segunda maior cidade do país, o governador diz que "não é hora de radicalizar". Ele aproveita para jogar uma farpa que, para um entendedor mediano, pode explicar o entrevero: "Os ônibus intermunicipais faturam R$ 108 milhões por mês. Ao baixar o preço das passagens, tirei deles R$ 16 milhões. É a maior distribuição de renda já feita." Em média, as passagens de 540 linhas diminuíram 15%. Um deslocamento de Niterói para o centro do Rio, por exemplo, caiu de R$ 1,27 para R$ 1,08.

Guerra declarada, o Palácio Guanabara já acionou a primeira arma para enfraquecer o poder de Cabral: a sedução, caso a caso, dos parlamentares. O próprio Sérgio admite que o PMDB não manterá o patamar de 20 deputados que conquistou com sua filiação. Pelo menos três peemedebistas, de olho na caneta do Executivo, decidiram debandar para o PDT seguindo a trilha do fisiologismo, além de muitos outros de partidos menores.

Cabral e Picciani juram por seus filhos que o diálogo é uma invenção. "O PMDB não quer nenhum cargo. O palácio não precisa do expediente da mentira para atrair deputados", argumenta Cabral concordando que a discussão foi dura. "Mas eu consegui acalmar e deu tudo certo", minimiza. Ele se nega, porém, a apresentar outra versão da briga: "Conversa entre quatro paredes de governador com deputados não é para virar alvo de fofoca, não sou vizinha faladeira." Ex-pedetista, Picciani resgata a história de amizade que tem com Garotinho para dizer que "seria impossível um diálogo nesse tom". Mas, também, se recusa a revelar o conteúdo da discussão.