Há sete anos, o economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs, cunhou a expressão BRICs, para se referir a Brasil, Rússia, Índia e China, países que emergiam como futuras economias de peso em um mundo cada vez mais globalizado. Desde então, agentes financeiros de todo o planeta acompanham com especial atenção o desempenho dos chamados mercados emergentes. No ano passado, seis anos depois da observação feita por O’Neill, a economia desse novo bloco contribuiu com cerca de 70% para o crescimento do PIB mundial, contra 20% dos europeus e dos Estados Unidos. Diante de números tão expressivos, a comunidade financeira internacional esperava o momento em que os BRICs fossem submetidos a um grande teste. A questão colocada era saber como a nova economia reagiria diante de uma crise. Os emergentes iriam sucumbir em efeito dominó a partir de problemas que pudessem surgir com as velhas potências econômicas (EUA e Europa) ou teriam condições de superar adversidades e dar a volta por cima?

O teste nasceu com a quebra do Lehman Brothers nos Estados Unidos e o colapso financeiro dos países desenvolvidos. A recessão chegou tanto nos Estados Unidos como na Europa. "Neste momento em que o mundo rico parece que vai entrar em recessão absoluta, é preciso que o mundo emergente seja a resposta positiva que os ricos não estão conseguindo ser", disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante visita a Moçambique, na semana passada. "Imaginem se não fossem os emergentes crescendo. É a periferia da economia mundial que está salvando o centro nervoso do capitalismo", completou Lula. O economista-chefe do Bradesco, Octávio de Barros, faz o mesmo diagnóstico: "Hoje existem outras locomotivas no mundo. Os países emergentes serão responsáveis em 2008 por 80% do crescimento do PIB mundial e, em 2009, por quase 100%."

É certo que o crescimento mundial será bem menor que nos últimos anos de bonança global, mas as primeiras respostas ao grande teste mostram que, mais do que a volta por cima dos BRICs, está em curso a consolidação de dois novos pilares na economia mundial. Um em cada canto do planeta. China e Brasil, a cada ano, aumentam a presença no fluxo de comércio internacional. E têm como principal empuxe de sua economia o crescimento do mercado interno. Para quem previa que a economia chinesa pudesse recuar como reflexo da crise americana, o Comitê Central do Partido Comunista da China deu uma resposta surpreendente. Baixou um pacote de reformas no campo que pretende dobrar a renda rural da China nos próximos 12 anos.

Com a "reforma da terra", os camponeses terão liberdade para alugar ou hipotecar suas terras, que desde 1978 eram de uso exclusivo do Estado. A medida permitirá a cerca de 750 milhões de chineses que vivem no campo engrossar ainda mais o enorme mercado consumidor chinês. Segundo o empresário Luiz Cezar Fernandes, fundador do Banco Pactual, isso significará uma fornada de novos compradores que vai assegurar o crescimento do mercado interno independentemente do que vier a acontecer no resto do mundo.

Atualmente, o Brasil exporta com sucesso para a China commodities, principalmente minério de ferro, e produtos de baixo valor agregado. De junho de 2007 a junho deste ano, as vendas externas para a China somaram quase US$ 15 bilhões, mas o governo espera dobrar o volume para US$ 30 bilhões nos próximos dois anos. Para intensificar as exportações, o Ministério do Desenvolvimento identificou 48 setores potenciais. São produtos que respondem por US$ 637 bilhões (67%) das importações chinesas provenientes de outros países. Vinte e oito setores teriam condições de já disputar o mercado, entre eles petróleo, metais, papel e celulose, produtos minerais, carne de aves e suína, peles e couro, metalúrgicos, farmacêuticos e máquinas e motores. "Oportunidade para a indústria brasileira é o que não vai faltar", diz Fernandes.

Fica claro que o Brasil, de seu lado, também tem plenas condições de sair da atual crise com leves escoriações que em nada o desviariam da rota do crescimento. Uma das estratégias a serem perseguidas é exatamente a de reforçar o comércio com o dragão chinês e outros países emergentes. Mais do que nunca, é preciso diversificar a pauta comercial, abrindo novos destinos. Na semana passada, por exemplo, Lula levou sua comitiva de ministros para a Índia para intensificar negócios em áreas como aviação e energia.

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Com base no seu mercado interno e nas exportações, o Brasil poderá sair mais forte da crise. Segundo pesquisa da Bloomberg em 100 países, os brasileiros são os mais otimistas em relação à própria economia. Também no Exterior, o País é apontado como uma das exceções. "Se algum país é hoje capaz de domar essa tempestade que enfrentamos é o Brasil", afirmou Bill Rhodes, presidente do Citicorp, em conferência na segunda-feira 13, em Washington. "Começo a acreditar que Deus é realmente brasileiro", completou, sob aplausos da platéia de homens de negócio.

Brasil e China não são responsáveis pela crise que se abate sobre Estados Unidos e Europa e que tem servido para testar o fôlego dos BRICs. Mas o que se verifica é que ambos os países têm dado mostras de que podem ser agentes importantes para a rápida recuperação da economia. "Garantir o crescimento econômico dos países em desenvolvimento talvez seja a única forma de se evitar a recessão mundial", avalia o economista Paulo Nogueira Batista Júnior, representante do Brasil no FMI.
 

O que muitos analistas estão começando a enxergar agora é que o teste real não parece ser o dos BRICs, especialmente Brasil e China, mas das maiores potências econômicas do planeta. Os Estados Unidos, por exemplo, apostaram no crescimento inesgotável do consumo e na liquidez farta. Agora, a festa acabou e a conta se mostra pesada. Ao rol de más notícias, como a maior queda da produção industrial em 34 anos ou a disparada do desemprego, some-se o atestado de incompetência dos responsáveis pela economia americana: o secretário do Tesouro, Henry Paulson, e o presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke. Eles demoraram a agir e, quando o fizeram, meteram os pés pelas mãos.

"Até o momento a atitude adotada pelos Estados Unidos tem sido escandalosa", afirma o economista sueco Arne Berggren, um dos autores do plano que tirou a Suécia de uma crise financeira na década de 1990. Henry Paulson, com seu pacote de US$ 850 bilhões, acreditava que o remédio seria retirar do mercado os títulos podres, mas a resposta do mercado foi negativa. Tanto os americanos como os europeus precisaram abrir mão das veleidades neoliberais e se vêem agora forçados a se curvar aos novos tempos da economia mundial. Em reunião do bloco europeu em Bruxelas, o primeiro- ministro britânico, Gordon Brown, defendeu a necessidade de uma "reconstrução da arquitetura financeira internacional" para adaptar a economia às mudanças mundiais. "Essa reconstrução pede exatamente a mesma visão que mostramos nos anos 40, quando criamos o FMI, o Banco Mundial e a ONU", afirmou Brown.

Naquela época, a nova ordem mundial foi feita sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial a partir da força bélica das nações vitoriosas. Agora, dos escombros de Wall Street o mundo pode refazer seu equilíbrio político com base não no militarismo, mas no vigor econômico de cada nação. É por isso que o teste dos BRICs é tão importante. Hoje, sem que a recessão tenha cobrado um preço eleitoral no Primeiro Mundo e sem que Brasil e China tenham provado o real poder de seus mercados, Brown propõe a convocação do G8, com a participação de economias emergentes como Brasil, China, Índia e África do Sul. Mas, se o Brasil confirmar a previsão do ministro Guido Mantega de crescer 4,5% em 2009, a questão será outra: que ordem econômica surgirá num quadro de recessão profunda no velho mundo, enquanto o novo não pára de crescer? O desenvolvimento de um eixo comercial Brasil- China está longe de representar para a economia a força da aliança Estados Unidos-Europa. Mas uma vez concretizado, o mundo dificilmente voltará a ser o mesmo.

O ministro "Flash" Gordon em ação

Nas histórias em quadrinhos, Flash Gordon salva o planeta Terra das forças do imperador Ming. No mundo real, o primeiro-ministro do Reino Unido é o herói que lidera as maiores nações do mundo na luta contra a ruína do sistema financeiro global. Mais rápido do que outros governantes, ele lançou um pacote de socorro financeiro que acabaria servindo de inspiração para o presidente americano, George W. Bush, e para países como Alemanha, Espanha e França. Mais ágil, o premiê britânico autorizou, antes de qualquer um, a utilização de recursos do Tesouro para comprar participação nos bancos que corriam risco de falir, num desembolso total de 37 bilhões de libras. Mais eficiente, cortou bônus e dividendos de executivos graúdos das instituições financeiras e anunciou o restabelecimento de linhas de crédito para a população. Seu nome é Gordon Brown, mas você pode chamá-lo de Flash Gordon – pelo menos é assim que a imprensa inglesa vem se referindo a ele nos últimos dias.

Nem sempre Brown foi um herói. Político sem carisma, conhecido pelo mau humor, o primeiro-ministro vinha sendo criticado pelo fraco desempenho da economia britânica em 2008. Diziam que Brown era indeciso e que não estava à altura do cargo. Até que a crise veio e o primeiro-ministro revelou uma faceta muito diferente. Firme, determinado, arrancou elogios do Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman e até do presidente Lula. Sua nova cruzada é ainda mais ousada. "Talvez seja necessária uma nova forma de capitalismo", disse. Será isso possível? É bom não duvidar do poder de Flash Gordon.

Amauri Segalla, enviado especial a Londres

computação gráfica sobre foto BEN STANSAL /AFP


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