Neurocientista que tratou Joãosinho Trinta, Herbert Vianna e Marcos Menna diz que a recuperação está também em entender o paciente

A gaúcha Lúcia Villadino Braga vai ter um papel de destaque no desfile da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro. Graças a ela e sua equipe, do Rede Sarah, em Brasília, Joãosinho Trinta voltará a derramar sua criatividade no desfile da Escola de Samba Vila Isabel, reabilitado de seu segundo acidente vascular cerebral, ocorrido no início de 2005. Joãosinho, os vocalistas das bandas Paralamas do Sucesso, Herbert Vianna, e do L.S Jack, Marcos Menna, são três famosos na multidão de anônimos que usufruiu do método desenvolvido por Lúcia, uma loura de cabelos escorridos e vivos olhos azuis que mais parece integrante de um grupo de rock dos anos 70. A simpatia é irradiante. O maior segredo de seu método é o afeto. “Gosto de cada paciente”, confessa essa neurocientista de 47 anos, casada, três filhos e uma neta.

Lúcia chegou ao Sarah em 1977 convicta de que poderia usar a música, sua formação primeira, para reverter os danos das lesões cerebrais em crianças. Tem mestrado em psicologia e pedagogia e é doutora honoris causa da Universidade de Reims, na França. Misto de sangue alemão, italiano e indígena, é uma workaholic da comunidade internacional de neurocientistas e acompanha de perto as pesquisas com células-tronco neuronais, ainda restritas aos animais. Quando ISTOÉ chegou em seu gabinete, ela recebia o e-mail de um empresário de Houston (Estados Unidos), cansado de procurar tratamentos para seu filho, de 17 meses, com lesão cerebral. “As pessoas vêm para cá atrás de uma abordagem humanista, associada a equipamentos de Primeiro Mundo”, observa. Lúcia fica no hospital 14 horas diárias. Fora do trabalho, também se dedica a atividades diferenciadas. Ela esfria a cabeça a 20 metros de profundidade, em mergulhos no mar. E para as raras horas vagas se dedica a uma coleção de instrumentos, do piano à guitarra. “Já toquei violino e oboé.” Em suma, é uma artista.

ISTOÉ – ISTOÉ ? A sra. ajudou a devolver Joãosinho Trinta ao Carnaval 2006. Como foi a recuperação dele?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia Villadino Braga – Ele veio pela primeira vez ao hospital em agosto de 1996. Tinha sofrido um acidente vascular cerebral (AVC) um mês antes, com uma hemeparesia (comprometimento leve em que a pessoa perde o controle de uma parte do corpo) direita, que causou distúrbio de linguagem. Tinha dificuldade para falar e caminhar. Naquele tempo, ainda não havia ressonância funcional, exame que nos permite ver o cérebro em funcionamento e verificar as soluções encontradas pelo próprio órgão para contornar os danos. Seu programa de reabilitação foi feito em cima do Carnaval, o que ele mais adora. Recuperou-se e voltou à avenida. Em novembro de 2004, passou mal e teve de ser internado de novo, quando comentou que havia mudado muito e estava mais disciplinado. Em março de 2005, teve uma hemeparesia esquerda. Veio em um estado muito grave, com dores, praticamente sem movimentos.

ISTOÉ – ISTOÉ ? O Carnaval voltou a direcionar o tratamento?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – Dessa vez, não dava nem para avaliar seu raciocínio. Ele mal conseguia falar. Era difícil ouvir sua voz. Mas Joãosinho tem muita vontade de viver, de ser feliz. Começamos a recuperação em cima da concepção do Carnaval. Assim que sua voz recuperou um certo nível de intensidade, trabalhamos por telefone e e-mail. Ele se saiu muito bem. A região que comanda o movimento foi bem afetada, mas já é capaz de andar. Vai cruzar a avenida em um carrinho motorizado e trabalhará como carnavalesco. Passou o Natal em casa e volta para cá depois do Carnaval. Todos os pacientes o adoram. Quase montou uma escola de samba no hospital e está levando um grupo de cadeira de rodas para desfilar.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Joãosinho sofreu dois AVCs. Não há risco de reincidência?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – A reincidência de AVC é comum. Quando a pessoa sofre o primeiro, tem de fazer exames para apurar se há tendência genética e tomar muito mais cuidado. Ele está bem orientado, em termos de dieta, medicação e de evitar o stress. Deve ter acompanhamento permanente. Coordeno uma equipe multidisciplinar, de quase 60 pessoas. Seis a oito ficam mais próximas do paciente.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Quais as alternativas criadas para o Herbert Vianna?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – Fizemos a ressonância funcional e vimos que, no início do tratamento, em julho de 2001, ele usava mais as áreas da visão e do ritmo. Para cantar e lembrar da música, em vez de usar as partes lesadas, ele recorria à porção do cérebro associada a imagens e ao cerebelo, que é ligado ao ritmo. Estabelecemos o programa junto com ele e a família. Vimos a lesão se modificar à medida que ele melhorava. Passou a usar mais as áreas de abstração e decisão, como os lobos parientais e frontais, e construiu estratégias para se lembrar. Hoje ele compensa muito bem os danos que sofreu. Fez dois períodos de internação e mantém um acompanhamento. O mais importante para ele é cuidar dos três filhos e voltar à música. Sua evolução é permanente.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Como ele estava quando chegou ao hospital?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – O acidente de ultraleve foi em fevereiro de 2001 e ele ficou internado aqui de julho a agosto. Voltou em outubro e vem ao hospital periodicamente, a última vez em dezembro. Herbert sofreu dois tipos de lesão, uma na medula, e por isso não caminha, e outra, significativa, no lóbulo temporal esquerdo. Essa área do cérebro está ligada à memória. Foi isso que perdeu. Herbert é muito inteligente e criativo e manteve essas características. Ele chegou em estado muito grave. Tocava uma música e, quando acabava, dizia “lembrei outra” e repetia a música. “Lembrava” outra e voltava a tocar a mesma. Isso podia durar até uma hora, sem que percebesse. Eu falava com ele, voltava meia hora depois e, com jeito educado, se desculpava, mas dizia não se lembrar de mim.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Herbert vai continuar a melhorar?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – A memória está ligada à atenção e ao desejo de reter a informação. Depois de uma lesão, isso se torna mais difícil. Mas Herbert sempre sabe tudo o que se refere ao Paralamas e aos filhos. Perguntas da vida cotidiana são mais difíceis. Havia um conceito de que as pessoas recuperavam muito nos primeiros seis meses, depois estacionavam. Não é isso o que noto. A recuperação não pára. Fazemos avaliações periódicas e cada vez ele está melhor. Vai continuar melhorando. O importante é que está tocando a vida, sustenta a família, compõe e já lançou três CDs depois do acidente.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Como está sendo a reabilitação do vocalista Marcos Menna (ele fez uma lipoaspiração em 2004, teve um choque anafilático e uma parada cardiorrespiratória que durou 20 minutos. O cérebro deixou de ser irrigado, comprometendo parte de suas funções)?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – O choque aconteceu em agosto de 2004 e ele ficou aqui de 31 de agosto a 22 de dezembro. Em 2005 voltou várias vezes. Sofreu uma lesão difusa, na qual não há um foco específico e sim um comprometimento amplo do cérebro. Quando chegou, não falava, não coordenava o movimento da boca e se alimentava por traqueostomia. Sua lesão pegou o movimento, a área da deglutição e diversas outras. Mas acreditamos em sua melhora. Hoje, ele já tem plena consciência de ser músico e canta bem.

ISTOÉ – ISTOÉ ? A música foi o tratamento?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – Ele tinha movimentos involuntários do corpo e dificuldade com a voz. Na última vez que esteve aqui, cantou junto com o CD. Temos um software no qual podemos comparar a voz dele à gravação. Já consegue fazer o que fazia. Aqui ele, além da fonoaudiologia e fisioterapia, está sempre tocando. Quer voltar a ser músico. Não o perturbo para fazer outras tarefas, mas sim o que gosta.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Como a sra. entrou nessa área?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – Quando procurei o Sarah, em 1977, acreditava que podia recuperar crianças com lesão cerebral por meio da música. Comecei a trabalhar e passei a aprender com os pacientes e suas famílias. Na verdade não sabia nada e talvez hoje saiba menos ainda. Quanto mais estudo, mais dimensiono minha ignorância. Quando comecei, a ciência no Brasil ainda era muito primitiva, nem havia tomografia computadorizada. Quando vi as primeiras tomografias fiquei surpresa porque crianças com quadros graves de paralisia cerebral pareciam normais no exame, ainda muito rústico. A tecnologia evoluiu e hoje podemos ver todas as alterações cerebrais.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Qual é o diferencial de seu trabalho?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – Percebi a necessidade de ouvir as pessoas, aprender e tentar entendê-las. Lembro-me de um atendimento com uma criança quando ainda usava mais música. Comecei a tentar técnicas de livros, mas nada funcionava. Olhei nos olhos da menina e percebi: qual a minha de vir com uma técnica de fora para dentro? Eu a peguei no colo e passei a interagir com ela. Foi muito legal. A maior mudança esses anos foi ter mais tecnologia para diagnóstico, prognóstico e tratamento, além do aprofundamento de procurar enxergar o outro e compreendê-lo.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Como acontece a reabilitação de dentro para fora?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – Substituímos as redes neuronais. Hoje sabemos que temos redes neuronais, do cérebro, usadas para falar, memorizar, planejar, uma para cada atividade. De início, a ressonância funcional fez um mapeamento cerebral. Percebi que a técnica podia mostrar os caminhos que o cérebro encontra para se reorganizar. Comecei a ver que, quando o cérebro sofre algum impacto, a pessoa tenta usar outras áreas para manter a memória. Tive um paciente que usava áreas da visão para se lembrar. Então, usei estímulos visuais para reforçar a rede neuronal que já estava sendo desenvolvida. Assim, a reabilitação passa a ser de dentro para fora. Reforçamos os caminhos que os próprios neurônios fazem. Se alguém tem um problema de memória, temos de saber qual o contexto profissional da pessoa. Ela vai usar o cérebro para sua atividade.

ISTOÉ – ISTOÉ ? O envelhecimento do cérebro explicaria a perda de memória?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – Assim como o corpo, o cérebro deve estar sempre em exercício. O envelhecimento do cérebro é muito questionável. Se a pessoa continua exercitando, isso se soma à experiência de vida. O cérebro só decresce quando há uma patologia, como o mal de Alzheimer.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Qual é a melhor maneira para exercitar a memória?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – Há uma idéia de que, com a idade, a pessoa perde a memória, principalmente a partir dos 45 anos. Nessa faixa etária costumamos assumir grandes responsabilidades profissionais, além das responsabilidades de vida. É uma etapa de muito stress, que influi na memória. Se a mãe esquece a mamadeira no fogo, está estressada. Se é a avó, está gagá. É puro preconceito. Muitas vezes uma pessoa de 50 anos se queixa que a memória está pior do que a da mãe, com 75 anos. Porque a mãe já não está sob stress. Temos de exercitar a memória dentro de nosso contexto. Ler, discutir sobre assuntos de cada foco de interesse. Quando a pessoa discute, exercita sua rede neuronal.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Qual sua pesquisa mais recente?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – Ela acaba de ser publicada no livro The child with traumatic brain injury or cerebral palsy (editora Taylor & Francis), lançado este mês na Inglaterra (ainda não disponível no Brasil). Foi o resultado de pesquisas de treinamento de família. Dividimos um grupo de crianças em dois: um foi tratado pela equipe e outro pela família, que aprendia nossos métodos. Tudo virou uma brincadeira agradável no contexto da criança. As que foram tratadas por um ano pela família tiveram desenvolvimento cognitivo e motor muito melhor. O papel dos pais de ensinar a criança a andar é natural. Depois de uma lesão, a família é normalmente excluída, quando não precisa ser. O livro é resultado dessa metodologia, que prova a importância do afeto na recuperação.

ISTOÉ – ISTOÉ ? Que avanços as pesquisas com célula-tronco ainda podem trazer para a recuperação de lesões cerebrais?
Lúcia Villadino Braga

Lúcia – As perspectivas são fantásticas. Até a célula nasal pode se transformar em célula neuronal. Mas as pesquisas ainda são feitas em animais. No fim de 2005 participei de uma reunião nos Estados Unidos com neurocientistas para avaliar que rumos vamos tomar. A tendência mundial é a de ainda não transpor as experiências para o ser humano porque a célula neuronal é muito complexa. Estamos trabalhando com neuromarcadores. Vamos injetar células-tronco neuronais que serão marcadas para vermos para onde elas vão migrar. Quando tivermos mais segurança do local correto onde injetar e de como controlar sua migração – o que pode levar entre um e dez anos –, podemos partir para pesquisas em humanos. O bom é que a comunidade científica trabalha muito ligada, compartilhando as informações.