Benjamin Constant Botelho Magalhães (1837-1891), professor militar, foi consagrado o Fundador da República em 1891 graças à sua decisiva influência no movimento que levou à queda do Império, em 15 de novembro de 1889. Já Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias (1803-1880), entrou para a história como o Patrono do Exército. Embora pertencessem à mesma corporação, uma aguda discórdia entre os dois tem sido abafada por mais de um século. A origem dessa desavença era a imagem que cada um deles construiu do militar ideal. Constant defendia o cidadão fardado, porém capaz de contestar uma ordem. Para Caxias, o soldado tinha de cumprir cegamente seu dever. Desde 1892, quando Raimundo Teixeira Mendes lançou a primeira biografia de Benjamin Constant, o Exército tenta ocultar a correspondência pessoal do professor, que evidenciava esse antagonismo. Mas, a partir de 24 de novembro, as cartas serão divulgadas no livro Cartas de Guerra – Benjamin Constant na Campanha do Paraguai (Iphan), do historiador carioca Renato Lemos, 47 anos.

Trata-se da mais completa documentação pessoal já registrada sobre a Guerra do Paraguai. São 60 cartas, 30 delas inéditas, que não foram escritas para serem publicadas. A maior parte foi enviada para sua mulher, Maria Joaquina, que tinha 15 anos quando se casaram. Ele estava com 29. Constant partiu para a guerra cheio de conflitos. Era arrimo de família. Casado há pouco tempo, deixou a mulher grávida e uma filha pequena. Também foi obrigado a internar sua mãe em um hospício. Ela enlouqueceu com a morte do marido, quando Benjamin tinha 12 anos. Sentindo-se desamparado, o jovem tentou suicídio. Foi salvo pela escrava que lavava roupa no rio em que se lançou para morrer.

Nas cartas, Constant critica o que considerava a covardia, a incompetência política e militar de Caxias. Sobretudo em uma delas, que tem sido alvo de grande controvérsia desde o século passado. Seu primeiro biógrafo publicou-a apenas parcialmente, omitindo trechos mais pesados como os reproduzidos com exclusividade por ISTOÉ (leia também: Os gritos de agonia da Pátria). Em 1997, o cientista político Vitor Izecksohn, 37 anos, da UFRJ, procurou a Biblioteca do Exército para editar sua dissertação de mestrado O cerne da discórdia. Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do Exército. O livro foi editado sem esta mesma carta. “A editora do Exército alegou que não podia publicar algo que desabonasse a figura histórica do Duque de Caxias”, explica Vítor, que move uma ação de direitos autorais contra a Biblioteca na Justiça Federal.

Para Renato Lemos, “o mais relevante dessas desavenças é a imagem divergente da tropa preconizada pelos dois militares”. A teoria se confirma com alguns episódios. Durante o Estado Novo, a estátua de Caxias passou a ocupar o local onde estava o monumento a Benjamin Constant, bem em frente ao Ministério da Guerra, no centro do Rio. Este foi discretamente afastado para a sombra de árvores próximas. Vale lembrar que Constant foi o primeiro ministro da Guerra da República. Em novembro de 1937, quando foi inaugurado o monumento ao marechal Deodoro da Fonseca, a mesma comissão organizadora responsável pela estátua lançou um livro. No capítulo Benjamin Constant contra Caxias, foi transcrito apenas um bilhetinho de Deodoro. “Isso tudo revela como a cultura militar sempre manteve laços com sua tradição”, analisa Lemos.

Dor e mágoa – A correspondência de Constant traz um tom doce de quem sente muita saudade da família, em contraste às ásperas críticas que faz aos generais na condução do conflito. Embora tenha permanecido apenas um ano no front, como capitão, foi tempo suficiente para enchê-lo de dor e mágoa com as dramáticas cenas que viu, como a que relatou em 7 de junho de 1867, de Tuiuti: “A cena horrorosa que se pode observar – as cabeças de uns eram arrancadas com o tronco a um golpe de espada, as de outros rachadas (…) atiravam longe os miolos (…) a maior parte sentia prazer em matar e em esquartejar os homens depois de mortos.”

O que o fez voltar para casa antes de terminada a guerra, em 1870, foi a malária que matou mais soldados do que o próprio combate. A Guerra do Paraguai começou em 1864 e no ano seguinte foi assinado o acordo que criou a tríplice aliança, entre Brasil, Argentina e Uruguai. O estopim foi a invasão, pelo Paraguai, da cidade de Corrientes, na Argentina, e a apreensão de um navio brasileiro no rio Paraná, fronteira entre o Paraguai e Mato Grosso. Benjamin Constant morreu aos 54 anos, vítima de várias complicações provenientes da malária.

Homem de hábitos austeros, talvez um de seus maiores luxos tenha sido a casa que alugou quando foi nomeado ministro, na rua Monte Alegre, em Santa Teresa, zona sul do Rio. Pregava o positivismo, sistema filosófico criado pelo francês Auguste Comte, no século XIX. Acreditava que só a ciência libertaria a humanidade do obscurantismo e negava a existência de Deus. Passou a vida dando ênfase à educação e conquistou a tal ponto a confiança da jovem oficialidade que chegou a criar pactos de sangue. “Eram documentos manuscritos em que se comprometiam até a morte na luta pela Proclamação da República”, esclarece Fátima Bevilaqua, diretora do Museu Benjamin Constant, que funciona desde 1982 em sua antiga residência.

A publicação deste livro, além da restauração do acervo particular do museu – são 2.700 documentos, 550 livros e 912 fotos –, foi viabilizada por um convênio de R$ 46 mil com a Petrobras, que também prevê a informatização do acervo a partir de abril. Renato Lemos lança ainda, este mês, pela editora Topbooks, uma biografia sobre Constant.